Uma loucura sem método

Uma loucura sem método

“Loucura, embora tenha lá seu método” foi o que dissera Polônio a Hamlet, segundo a narrativa de Shakespeare.

Nos debates sobre reforma tributária e temas conexos consigo perceber as loucuras, mas ainda não consegui identificar, caso exista, o método.

Merece destaque nessas frequentes insanidades a proposta de criação de uma singular “contribuição sobre bens e serviços”, constante do projeto de lei nº 3.887, de 2020, para o qual se requereu urgência na tramitação para, em seguida, abdicar-se dessa urgência sob a patética alegação de desobstruir a votação de “inadiáveis” alterações no código de trânsito.

O projeto sequer esclarece se a base de cálculo dessa contribuição seria operações ou receita, preferindo delegar a resolução desse dilema, caso o projeto prosperasse, para o Judiciário, em robusta contribuição ao aumento da litigiosidade no País.

Muito já se disse sobre as impropriedades daquele projeto de lei, mas nele há que se assinalar a virtude de expor, em escala reduzida, as mazelas da PEC nº 45, que propõe a instituição de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e um enigmático Imposto Seletivo. Tenta-se encobrir essas impropriedades evitando mensurar as repercussões dos projetos sobre preços, setores e entes federativos, sob a justificativa de que essas informações “não contribuiriam para o debate” (sic).

As mais recentes pérolas desse universo de loucuras são a divulgação de um anteprojeto de lei complementar da PEC nº 45 e discriminação das fontes de financiamento da denominada “renda cidadã”.

O anteprojeto de lei complementar a uma Proposta de Emenda Constitucional que não foi apreciada pelo Congresso Nacional, apesar de inusitado, ajuda a desvelar as deficiências da proposição.

Ao admitir a vulnerabilidade do IVA à sonegação, como especial menção ao que ocorre com esse imposto na civilizada Europa, propõe-se condicionar o aproveitamento de créditos ao efetivo recolhimento do imposto na etapa anterior. Há que se reconhecer o ineditismo da proposta, tanto quanto seu surrealismo. Como poderia um contribuinte fixar o preço da mercadoria ou serviço sem saber se seu fornecedor vai recolher o imposto no mês subsequente?

Para administrar o IBS, é proposta a criação de uma Agência Tributária Nacional visando “implementar federalismo cooperativo” (sic), integrada por servidores da administração tributária dos entes federativos e dirigida por um conselho de administração, escolhido por uma assembleia geral, com poderes para eleger uma diretoria executiva. Esse Conselho teria competência para expedir normas infralegais e proceder ao julgamento administrativo tributário por meio de um órgão denominado “Contencioso Tributário”. Há também alusão, não traduzida no texto do anteprojeto, a um Conselho Consultivo Empresarial. Na história da administração tributária, não me recordo de uma proposta pior do que essa.

Para a renda cidadã, aventou-se, entre outras fontes de financiamento, a postergação do pagamento de precatórios da União. É o auge da temporada de ideias ruins. Qual a autoridade moral de um Estado que posterga o pagamento de suas dívidas e cobra dos contribuintes o pagamento pontual de tributos?

Estamos, hoje, com mais de 4,7 milhões de pessoas infectadas pela Covid-19 e mais de 143 mil mortos, suportamos uma taxa de desemprego recorde (13,8%), “comemoramos” a queda de 9,7%, no segundo trimestre, do PIB brasileiro, o agronegócio é impactado por um entusiasmado desapreço  à política ambiental, há previsões consistentes sobre o aumento da parcela da população em condições de pobreza e extrema pobreza, a crise fiscal dos Estados e Municípios vai aumentar. A despeito de tudo isso, continuamos, ao contrário do que é feito no resto do mundo, a debater uma reforma tributária que hostiliza severamente setores econômicos e eleva o preço de serviços tão essenciais, como saúde e educação, e de livros, que desfrutam de uma longeva isenção de tributos.

O Brasil, infelizmente, não desperdiça a oportunidade de cometer erros.