Manifesto aos militantes

Como a justiça eleitoral está usurpando a soberania do voto e destruindo a democracia representativa: o caso dos Capiberibe

Roberto Amaral*

Nossa democracia representativa, a grande construção republicana, é, ainda hoje, aquela florzinha frágil definida por João Mangabeira, que precisa ser regada todos os dias, pois, jamais esteve ao resguardo dos que atentam contra sua base insubstituível, a soberania do voto.

O sistema político-eleitoral brasileiro encerra inumeráveis defeitos (agora mesmo toda a gente — à esquerda e à direita — clama por ‘reforma’), mas ninguém discute o mais nocivo de seus males, a insegurança jurídica, produto de jurisprudência movediça e ingerência legiferante do TSE, contrariando a condição básica do Estado de direito: regras claras e imutáveis durante o jogo. Pois o TSE, a pretexto de regulamentar o regulamentado (o Código eleitoral de 1965 e a legislação ordinária de 1997) edita, a cada eleição, ‘Resoluções’ que criam direitos, e a cada julgamento inova a interpretação, modifica regras e o direito estabelecido, numa faina legiferante que desrespeita a Constituição Federal. E mais afoito avança quanto maior é a omissão suicida do Congresso. Desmoralizando o Poder Legislativo, o Judiciário eleitoral desmantela o poder do voto, a viga mestra da democracia representativa.

A sociedade democrática moderna, assentada na separação de funções entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, tem como pressuposto, a legitimidade do poder, decorrente da soberania popular, que se manifesta através do voto, tanto mais autêntico quanto mais universal. Qualquer transferência de poder é usurpação, qualquer que seja sua origem, seja a japona dos militares, seja a toga de juízes autoritários.

Não faz muito, relembro a última ditadura, ergueu-se sobre a soberania popular (negando-a) o poder militar, que decidia irrecorrivelmente quem podia e quem não podia ser votado, e após as eleições, ‘depurava’ as casas legislativas mediante a cassação de mandatos.

Hoje, de novo, não basta ser eleito, é preciso passar pelo escrutínio não mais da japona, mas de juízes sem voto.

De novo a usurpação.

Na verdade, 
a justiça eleitoral de nossos dias lembra o antigo sistema da “degola”, exercido na República Velha pelas Comissões Verificadoras de Poderes. Então, o eleito dependia da aprovação (chamava-se ‘depuração’) dessas comissões para assumir o mandato. Não bastava ser eleito. Era o chamado “terceiro escrutínio”.

O TSE, auxiliado pelos tribunais regionais, é a Comissão de verificação da República redemocratizada. Antes, os militares agiam depois de rasgarem a Constituição; hoje, os juízes cassam mandatos em nome da lei, uma lei que modificam (na letra ou no entendimento jurisprudencial) a cada julgamento, para poderem adequá-la às suas sentenças.

Nossos magistrados batizam de ‘neo-positivismo’ esse processo de intervenção legiferante e violação da soberania popular; os políticos chamam-no de ‘judicialização da política’ e eu o designo como ditadura da Toga. A pior das ditaduras, a do coletivo, decorada de formalismo gongórico e blindada pela respeitabilidade e confiança que nas democracias se deve a qualquer Judiciário. Mas nenhuma instituição merece a confiança cega da cidadania. A violência, quando cometida pelo judiciário, é a mais perversa de todas, pois seus abusos são irrecorríveis e os prejuízos irrecuperáveis. Como ao tempo dos militares. Pior. Porque naquela então sabia-se que vivíamos sob a égide de um regime que destruíra o Estado de direito democrático, destruindo, de princípio, a ordem constitucional. Mas os tempos atuais são de rigorosa legalidade, sob o manto de uma Constituição democrática, uma democracia que a cada eleição é referendada pelo apoio popular.

Com o silêncio de quase todo o mundo (ressalve-se a FSP), estamos assistindo ao um novo caso Dreyfus, sem o aríete de um Zola, sem qualquer comoção política, sem apelo popular, o que deixa os algozes de mãos livres. No caso vertente, é verdade, as vítimas do autoritarismo não estão ameaçadas de prisão perpétua, como o jovem oficial francês, mas contra elas já foi lavrada a sentença de sua dupla morte política e a infâmia de um vício (compra de votos) que não cometeram.

Refiro-me, já percebeu o leitor, ao ‘caso’ do casal Capiberibe.

Contemos a história.

Em 2002, João Alberto Capiberibe e Janete Capiberibe são eleitos (PSB), respectivamente, senador e deputada federal pelo Estado do Amapá, são diplomados e tomam posse, passando a exercer o mandato legitimamente adquirido. O PMDB, cujo candidato havia sido derrotado nas eleições, aciona o Ministério Público local e este inicia processo para apurar a acusação segundo a qual o senador e a deputada haviam comprado dois votos por 26 reais. A acusação foi desmantelada, sabia-se na época e hoje está demonstrado que as testemunhas (a acusação é baseada exclusivamente numa prova testemunhal auto-desmentida) haviam sido compradas (FSP, 12.2.2011), mas o TSE não apreciou este ponto da defesa por uma tecnicalidade processual, e em 2004 os dois parlamentaes tiveram seus mandatos cassados. Assume a vaga de Capiberibe no Senado o desvotado Gilvam Borges, agente e beneficiário da fraude. No lugar de Janete não sei quem foi.

A farsa não conheceria traços de tragédia se, na apreciação do caso, o ministro Carlos Velloso não tivesse funcionado como verdadeiro advogado de acusação, perseguindo a cassação dos Capiberibe com diligência, dedicação e competência inexcedíveis. Sua Excelência, aliás, uma semana após votar contra o casal Capiberibe (2004), absolveu o inefável ex-governador Roriz em processo que continha, até, fotos registradas pelos “pardais” comprovantes do uso de veículos oficiais na campanha eleitoral. Dois pesos e duas medidas de uma justiça de muita visão.

Em 2006, sem mandatos, João Capiberibe é candidato ao governo do Amapá (não se elegeu) e Janete a deputada federal. É a campeã de votos. Eleita, é diplomada, toma posse e exerce integralmente o mandato.

Em 2010, Janete se candidata a deputada-federal, é novamente eleita, mas não pôde ser diplomada, por decisão do TSE; o mesmo ocorreu com João Capiberibe, eleito senador, e, por consequência, toma posse de novo, o mesmo usurpador, de novo derrotado nas urnas. O sr. Borges está lampeiro e fagueiro sentado numa poltrona do Senado Federal. Esse político macunaíma descobriu que, para eleger-se, não precisa de votos e a cada eleição vai conquistar seu mandato noutras plagas, apartadas da soberania popular.

Diz o TSE que o senador Capiberibe, e igualmente a deputada Janete, foi alcançado pela chamada ‘lei da ficha limpa’, que torna inelegível, pelo prazo de oito anos, a contar da eleição, quem tenha sido condenado por ‘órgão colegiado da Justiça Eleitoral’.

A decisão é um amontoado de injuridicidades. Vejamos:

1. Inconstitucionalidade.

A ‘lei da ficha limpa’ não pode ser aplicada às eleições de 2010, por força do ainda vigente art. 16 da Constituição Federal que exige, expressamente, que a lei que modifique o processo eleitoral só produza efeitos um ano após sua publicação (Este artigo, aliás, resulta de emenda do constituinte Jamil Haddad, senador pelo PSB/RJ);

2. Violação do princípio da irretroatividade.

A condenação se deu, pelo próprio TSE, em 2004, e a lei, que é de 2010, não poderia produzir efeitos em relação a fatos a ela anteriores;

3. Dupla condenação (bis in idem).

O senador já havia sido condenado em 2004 com a perda de seu mandato, e volta a ser condenado, pelo mesmo ‘crime’, com a perda do mandato adquirido em novas eleições, em 2010; idem relativamente à deputada;

4. Violação do princípio da segurança jurídica.

A ‘lei da ficha limpa’, na qual se esteia o TSE, veio alterar situação jurídica já consolidada, cujos efeitos esgotaram-se com a perda do mandato do senador e da deputada em 2004. A nova decisão, repetente, altera a própria condenação judicial, que, à época, compreendia, apenas, a cassação do registro e do diploma do candidato, e não gerava inelegibilidade.

O TSE, assim, para consagrar o arbítrio, inventa, pois cria a pena continuada, ou permanente.

João Capiberibe, acusado (falsamente) de um ilícito que teria cometido em uma eleição, sofre a cassação de dois mandatos, o segundo sem nenhuma acusação de vício, mesmo falsa, ou inquérito, ou processo. A suspensão de oito anos transforma-se em inelegibilidade de 16 anos. E mais. O povo do Amapá, o verdadeiro dono da soberania e principal vitima da violação, pois teve sua vontade reiteradamente desrespeitada, elegeu, em 2010, Camilo Capiberibe, filho do casal, governador do Estado. Por força da Lei das inelegibilidades, sem mandato, João Alberto e Janete não poderão concorrer a eleições nem em 2012 nem em 2014, ou seja, enquanto Camilo for governador.

Esta é a última ‘inovação’ do neo-positivismo do TSE, lembrando aqueles velhos tempos dos tapetões da CBF, quando os campeonatos eram decididos pelo Tribunal de Justiça Desportiva.

Desde o título deste quase tão-só desabafo (mas que deve ser recebido como manifesto dirigido a todos os que conservam o dom da indignação), venho falando nos Capiberibe. É chegado o momento de dizer que, para além dos mandatos do senador e da deputada, estão em jogo a democracia representativa e a ordem jurídica. Está em jogo, mais que o destino de dois políticos probos e pobres, pobres porque probos, e dedicados às grandes causas de seu país, a democracia brasileira, pois democracia não rima com violação de direitos individuais e invasão de competência constitucional. Não estamos defendendo, apenas, os mandatos usurpados dos Capiberibe, porque estamos defendendo, acima de tudo, a soberania do voto. O que está em jogo é a legitimidade da democracia representativa que não sobreviverá se lhe roubam o poder do voto popular, com o ‘terceiro escrutínio, este no qual se investe a justiça eleitoral.

O STF, a última esperança de recuperação do Estado de direito democrático, está sendo chamado a reconhecer o grave erro que vem cometendo a justiça eleitoral superior, e corrigi-lo, evitando que prevaleça essa violação de direito que é a retroatividade da lei para prejudicar o acusado.

Esta questão é políica, sublimemente política, pois ultrapassa quaisquer interesses pessoais ou partidários. Diz respeito à Nação democrática que voltamos a construir depois da derrubada da ditadura.

(*) Roberto Amaral é escritor e professor universitário, ex-Ministronda Ciência e Tecnologia, é membro do Instituto dos Advogados Brasleiros. É autor de Manual das eleições, Saraiva, 2011. É primeiro vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro.

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