O OLHAR DOS ÍNDIOS

Por Ribamar Bessa Freire

– Atira! Atira! – lhe dizia o índio Parakanã, apontando a caça. O antropólogo Carlos Fausto, com a arma na mão, olhava na direção indicada e não via bulhufas. Só árvores.

– Ali, ali, naquele galho – suplicava em voz baixa o índio, sinalizando o alvo com o dedo.

– Onde? Onde? – perguntava o antropólogo, atônito. Via apenas uma mancha verde formada por um emaranhado de troncos, folhas, cipós, raízes, musgos, liquens, sombras, tudo da mesma cor, mas nem sinal do animal. O bicho, que para ele continuava invisível, aproveitou a hesitação e se escafedeu, sem nem ao menos declinar sua identidade ao ofuscado caçador.

Foi ali, naquele momento, que Carlos Fausto, sem disparar um tiro, acertou o que não viu, ao suspeitar que seus olhos estivessem incapacitados de ver, dentro da floresta, aquilo que os índios viam. Estávamos no final da década de 1980, ele começava seu mestrado em Antropologia Social com os índios Parakanã, orientado por Eduardo Viveiros de Castro e não era, ainda, capaz de ler a floresta.

Essa história, com riquezas de detalhes, foi contada pelo próprio Carlos Fausto, pesquisador do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social do Museu Nacional. Ele lembrou o fato estimulado pela tese de Viviam Secin ‘Ortóptica, Oralidade e Letramento: a visão binocular dos indígenas Guarani Mbya da Aldeia Sapukai (RJ)’, orientada pelo linguista Luiz Antonio Gomes Senna, responsável por estudos sobre a gramática e o letramento numa perspectiva interdisciplinar e ecológica no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ.

Os ceguetas

A tese da doutora Viviam Secin, que é ortoptista com mais de vinte anos de prática clínica em seu consultório no Rio de Janeiro, parte de duas situações exemplares vividas por sujeitos cuja demanda visual foi alterada por mudanças na rotina profissional ou no estilo de vida.

A primeira ocorreu com uma médica, nascida e criada no Rio de Janeiro, que foi trabalhar em aldeias indígenas do Amazonas, onde viveu quatro anos. Ela fez percurso similar ao de Fausto, saindo da cidade para a floresta, encontrando um novo ambiente visual distinto dos espaços letrados urbanos, o que gerou problemas de adaptação.

A médica conta que ficou impressionada com a percepção visual dos índios que viam tudo, mesmo de noite, enquanto ela “não via da mesma forma que os indígenas”. Percebeu que “sua condição biológica não se ajustava àquele ambiente novo, que exigia compreender novos índices visuais e uma nova lógica interpretativa”.

Quando andava na floresta, tropeçava, caía, se sentia uma “cegueta”. Descobriu que “o uso da lanterna, à noite, mais atrapalha do que ajuda”. Com o tempo, aprendeu a exercitar um novo olhar, mas “mesmo assim, quando eu andava com eles, observava o quanto eles enxergavam o que eu não era capaz de ver”.

A segunda situação foi vivida por uma estudante de graduação em enfermagem, de 38 anos, que fez o caminho inverso. Nascida e criada em uma comunidade indígena no interior do Maranhão, onde não havia escola, ela migrou para a cidade, em busca de educação formal, mas enfrentou enormes dificuldades para se adaptar às novas demandas psicomotoras da leitura. As letras eram, para ela, o que a caça foi para Carlos Fausto: difíceis de ver, provocando embaçamento de imagens.

“Não conseguia ler porque me dava muita dor de cabeça. Eu via às vezes como se as letras fossem assim saindo do livro. Tinha letra no meio daquelas frases que eu não via, a coisa ficava sem sentido, porque eu pulava as linhas. Repeti muitas vezes a oitava série. Meus irmãos, que não concluíram o segundo grau, se queixam da mesma coisa: muita dor de cabeça, enjoo, tonteira… Eu ia ao oftalmologista e ele falava que eu não precisava usar óculos, eu enxergava muito bem, mas eu tinha alguma deficiência”.

Idêntica situação é confirmada por um índio Marubo, da aldeia Alegria, no Javari (AM) para quem “o papel também estraga os olhos. No início, o seu olho fica vacilante, você não enxerga, fica com dor de cabeça, você fica assim. Assim faz o papel, ele dá tontura”.

Os profissionais de ortóptica – uma ciência que estuda a visão binocular em seus aspectos sensoriais e motores – costumam diagnosticar essa inadequação visual de quem sai do mundo da oralidade para o da escrita como uma deficiência, uma incapacidade. Viviam Secim desconfiou disso. Suspeitou da interferência de fatores ambientais e culturais no processo de desenvolvimento visual e decidiu conferir, a partir de uma pergunta que formulou: será que todos nós, brasileiros, estamos igualmente aptos, em termos funcionais binoculares, para desenvolver a leitura e a escrita? Ou igualmente aptos para caçar na floresta?

Miopia

Ela pesquisou dois grupos populacionais escolhidos por seus distintos perfis culturais: um, formado por 99 índios Guarani Mbya da Aldeia Sapukai, de Angra dos Reis (RJ), de cultura predominantemente oral; o outro por 59 universitários não-indígenas, de cultura predominantemente letrada. Entrevistou, filmou, fotografou e aplicou testes para avaliar as funções visuais dos integrantes dos dois grupos. Concluiu que existem diferenças significativas, o primeiro grupo emprega mais o campo binocular periférico, enquanto o segundo usa predominantemente o campo binocular central.

As evidências apresentadas pela tese de Viviam demonstram que não existe um sujeito idealizado, dotado de uma fisiologia única e comum, e que as condições visuais são socialmente determinadas não apenas por fatores inatos, mas pela cultura e pela história. Quem é capaz de ler a floresta tem um olhar diferente de quem foi treinado para ler livros e vice-versa.

Portanto, não é cientificamente correto considerar a cultura urbana como “padrão”, como condição binocular “normal” ou “universal”. Nessa perspectiva, as diversidades visuais deixam de ser vistas como “deficiências” ou “distúrbios” para serem consideradas como diferenças visuais culturalmente possíveis.

Essa conclusão, que tem consequências sobre o processo de escolarização indígena e de indivíduos do meio rural, pode contribuir decisivamente para o planejamento escolar e a formulação de políticas públicas. A busca pelo conhecimento através da leitura e da escrita exige, entre outros aspectos, um controle adequado da motricidade ocular, que é fundamental para o desempenho escolar.

Um total de dezoito músculos oculares se orquestra durante a leitura, entrando em ação um verdadeiro jogo de forças – escreve Viviam. Por isso, no caso de povos da floresta e do campo, a autora propõe algumas estratégias de exercícios visuais e de aprestamento que facilitem “a transição de outros modos ecológicos de ver para o modo de ver necessário à cultura escrita”.

Durante cinco séculos, no Brasil, quando se tentou alfabetizar os índios, se usou a língua portuguesa, com resultados desastrosos. Essa prática de ensinar alguém a ler uma língua que não fala, foi apontada como irracional pela Linguística Aplicada. A partir da Constituição de 1988, os índios passaram a ter o direito de serem alfabetizados em suas línguas maternas, corrigindo uma distorção secular monstruosa. A tese de Viviam Secin nos chama a atenção para a existência de outra irracionalidade, que é desconsiderar a existência da diversidade visual.

Durante a defesa da qual participei como membro da banca, lembrei um personagem de Guimarães Rosa, Miguilim, um menino de oito anos, que vive com sua família no sertão do Mutum. Ele sofre tanto que amadurece, bebendo assim “um golinho de velhice”. No finalzinho da narrativa, chegam ao Mutum para caçar, vindos da cidade, dois homens, um deles é um médico, “um certo Doutor José Lourenço”, que estranha o olhar de Miguilim e faz nele alguns testes de visão. Descobre o que ninguém sabia, nem o menino, nem os outros personagens e muito menos os leitores: Miguilim era míope.

Essa é a chave para explicar muitos dos sofrimentos de Miguilim, alguns dos quais poderiam ter sido evitados se fosse feito um diagnóstico a tempo. O médico convida o menino para ir morar com ele na cidade, onde pode estudar. A família concorda. Antes de partir, Miguilim pede os óculos do médico emprestados e vê o Mutum, com outros olhos, pela primeira vez. Encantado, enxerga o sertão como um lugar bonito, vê os familiares, admira a beleza da mãe, os traços do tio.

A miopia não é apenas de Miguilim, mas do seu entorno, que não foi capaz de ver o que acontecia com o menino. No momento em que celebramos a Semana do Índio, a tese de Viviam Secin nos ajuda a corrigir a nossa miopia e nos possibilita ver um Miguilim coletivo. Trata-se de leitura prazerosa e necessária, que vai interessar a todos aqueles que trabalham com educação.