NA ESCOLA DO IGAPÓ

Por Ribamar Bessa:

O bodó Cascudinho sempre chegava atrasado na Escola do Igapó, frequentada pelos peixes da Amazônia. Foi lá que ele ganhou a fama de mentiroso, porque inventava histórias mirabolantes para justificar o seu atraso. Na segunda-feira, no primeiro dia de aula, eis o que aconteceu.
Ás 7h00 da manhã, a sineta tocou. Tia Piraíba, a robusta e roliça professora da Escola do Igapó, balançou as duas nadadeiras dorsais e fez a chamada:
– Zezé Tucunaré?
– Presente, professora.
– Manu Pirarucu?
– Presente, tia Piraíba! – respondeu o pirarucu-de-casaca, enquanto lixava as enormes escamas com sua língua de osso.
– Pacu Tribufu?
– Presente, fessora! – disse o pacu-curupeté, de cor cinza arroxeada, balançando seu ventre amarelo com manchas alaranjadas.
– Cascudinho Bodó?
– ????
 – Cascudinho Bodó?
– Faltou – responderam os colegas.
Cascudinho Bodó não estava. Só chegou muito mais tarde, na hora da merenda.
– Discente Cascudinho, por que você se atrasou?
Todos fizeram uma roda para ouvir a resposta. A hora do recreio já era conhecida no igapó e adjacências como a novela das nove.
– Tia Piraíba, desculpa. Saí cedinho de casa, lá no lago Espelho da Lua. Era ainda de madrugada. O lago, todo prateado, banhado pelo luar, refletia dentro dele a lua que parecia uma tapioca de beiju. As margens estavam protegidas por buritizeiros, açaizeiros e outras palmeiras que, enfileiradas, se perfilavam como sentinelas avançadas. Soprava uma brisa suave com cheiro de pitanga e de ervas aromáticas que se espalhavam pelas margens do lago de água cristalina. Eu vinha nadando velozmente, alegremente, ouvindo o canto dos pássaros, contemplando o balé das borboletas coloridas e o voo rasante das garças que, em bandos, desenhavam piruetas graciosas no céu. Foi quando o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria. Nesse instante, eu estava saindo do lago e ia entrar no rio, mas fui obrigado a frear bruscamente. Quase capotei.
– Por que freou? Freou por quê? – perguntou, com a respiração suspensa, a Piaba Vagaba de cor carmesim, pele manchada e barbatanas flácidas, interpretando a curiosidade de todos.
– Tive de frear, porque naquele caminho hídrico congestionado não havia espaço sequer para um peixe-agulha. A água estava tomada por milhares e milhares de peixes de mais de 2.000 espécies diferentes. Os cardumes nadavam contra a correnteza, uns colados nos outros, e subiam o rio para desovar em suas cabeceiras, procurando os berçários que lá existiam. Essa piracema gigantesca deu um nó no trânsito e engarrafou rios, lagos, igarapés, furos, paranás, enseadas, mangues, cacimbas e todo o mosaico de veredas aquáticas. Eu tive de esperar aquela multidão passar. Por isso, me atrasei – completou Cascudinho, ofegante. Podem confirmar com os meus vizinhos. Moro no lago Espelho da Lua, Buraco n° 2433, Nhamundá, Amazonas, Brasil, CEP 69.140-000, email cascudinho@amazonet.com
– Mentiroso! – exclamou com as costelas à mostra o gordo e untuoso Bibi Tambaqui, enquanto devorava 50 tucumãs, oito cupuaçus, 82 castanhas e dois cachos de açaí.
– Ele está inventando – reforçou Cunhatã Matrinchã cor de prata, cheia de espinhas. Ela movimentava as nadadeiras alaranjadas e, com suas três fileiras de dentes, mastigava um besouro e 43 moscas.
Cascudinho disse que queria ver sua mãe Madame Bodó mortinha num aquário ou numa rede de pescar se tudo aquilo não fosse verdade. Jurou:
– “Cruz de aço / cruz de ferro / se estou mentindo / vou pro inferno!”
– Ah, eu gostei dessa história. Vou contar pra vovó Elisa – falou Zezé Tucunaré, requebrando seu corpo com três pintas pretas, enquanto merendava farofa de aranha caranguejeira.
Vovó Elisa, a Traíra de Costa-Lisa, com os olhos verdes arregalados, enfeitou ainda mais a história da piracema, repassando-a para seu vizinho Tracajá Cheio-do-Chá, que a contou para Surubim Coisa-Ruim, que narrou para Piramutaba, que encaminhou num email para Big Fish, lá nos Estados Unidos, que traduziu para o inglês, fez um filme e espalhou pra Deus e o mundo as peripécias do Bodó, que ficou conhecido no Alabama como Ed Bloom.
As histórias de Cascudinho começaram subir os rios, até suas cabeceiras. Na terça-feira, às 7h00 da manhã, começou tudo de novo na Escola do Igapó, lá na floresta alagada. Ele, então, contou outras histórias. Inventou ainda novas histórias na quarta-feira e na quinta-feira, mas na sexta-feira, quando decidiu contar a verdade, ninguém mais acreditou.