Cidade pequena, corrupção grande

Por UOL Notícias (Edson Luiz)

É praticamente impossível dimensionar o total de recursos públicos desviados em fraudes e corrupção em todos os 5.570 municípios do país. Somente o que foi descoberto e investigado pelas autoridades nos últimos três anos ultrapassa R$ 10 bilhões. São crimes que não tiveram a mesma visibilidade que a Operação Lava Jato, mas cujo impacto é ainda mais devastador.

Algumas dessas cidades ostentam os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil.

De 370 operações contra fraudes e corrupção realizadas pela PF (Polícia Federal), pela CGU (Controladoria-Geral da União) e pelo MP (Ministério Público), entre março de 2014 e março de 2017, o maior número ocorreu no Nordeste, seguido pelas regiões Norte e Centro-Oeste.
O rombo nos cofres públicos poderia ser ainda maior nesse período se as autoridades não conseguissem estancar outras fraudes, que produziriam um prejuízo estimado em R$ 12,7 bilhões. Mesmo assim, ocorreram desde desfalques milionários até de pequenos valores. No Norte, por exemplo, de 64 licitações realizadas na pequena cidade de Pauini (AM), 44 estavam fraudadas. Em Mirante da Serra (RO), o desvio do dinheiro público foi quase o valor total da arrecadação do município.

A maior parte desses municípios depende majoritariamente de repasses federais e estaduais. De acordo com o último Balanço do Setor Público Nacional, feito pela Secretaria do Tesouro Nacional em agosto, 82% deles dependem de pelo menos 75% desses recursos. O Norte e o Nordeste, segundo o estudo, são os que mais precisam de outras fontes de recursos em comparação com as demais regiões.

Um rio de fraudes

Somente no dia 9 de maio de 2016, dezenas de policiais federais percorreram uma distância equivalente a quatro viagens entre Rio de Janeiro e São Paulo. O trajeto não foi feito por estradas, mas por rios sinuosos da Amazônia. Pelo ar seguiam dois aviões com outros grupos de agentes.

Destino: a pequena cidade de Pauini, de 10 mil habitantes, com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,496, um dos mais baixos do país –o indicador vai de 0 a 1 e, quanto mais próximo de 1, melhor é a situação do município.
Localizado no sul do Amazonas, no pequeno município foi instalado um esquema de fraudes que, em seis meses de 2016, roubou mais de R$ 15 milhões dos cofres públicos.
Na cidade amazonense, a certeza da impunidade e o isolamento incentivaram as fraudes. “O município é de acesso extremamente difícil. A falta de instituições resultou nos sucessivos desvios de recursos públicos, bem como a completa destruição da cidade, especialmente nas áreas da saúde e educação”, afirmou o procurador federal José Alfredo de Paula Silva, ao denunciar o esquema.

“Em Pauini, a prefeitura chegou a comprar 500 bolas de futebol para uma única quadra e a pagar R$ 1.870 pela lavagem de um microônibus”.

Em Mirante da Serra, um município carente do interior de Rondônia, com 11 mil habitantes e IDH de 0,643, não foi diferente.
A cidade, conhecida no passado por sediar corridas de avestruz, voltou a ficar famosa em 2015 após a Polícia Federal descobrir um desvio de R$ 18 milhões nos recursos de saúde e educação e em programas sociais da cidade.
O montante desviado é quase a arrecadação total do município, de R$ 20 milhões.
O valor do rombo surpreendeu os policiais da Operação Cerberus, mas a descoberta feita nas duas fases seguintes da investigação assustou mais. Os envolvidos na fraude tinham R$ 230 mil em espécie, além de 27 imóveis.
A lista inclui fazendas, duas academias de musculação, uma clínica de estética, lojas de roupas, de informática e de produtos agropecuários, casas e terrenos, além de 950 cabeças de gado, 15 cavalos, 13 carros, 18 motos, uma lancha e um canil com mais de 80 cães de raça.
Em Parauapebas, no Pará, as licitações de cilindros de gases medicinais resultaram em desvios de R$ 30 milhões com a ajuda de servidores públicos. O valor da compra do produto para seis meses, segundo os investigadores, daria para abastecer por um ano inteiro várias unidades de saúde de Goiânia –cidade que tem uma população cinco vezes maior que a da cidade paraense, de 200 mil habitantes.
Parte do assalto ao erário também financiou carros de luxo, lancha, aviões e helicópteros, além de uma fazenda, conforme a PF.
Ostentação como essa também acontecia em Cantá (RR), onde a Polícia Federal e a CGU descobriram um esquema formado por servidores municipais, incluindo uma ex-prefeita, três secretários e outras 50 pessoas. Juntos, eles desviaram R$ 20 milhões da prefeitura. Chegar aos envolvidos não foi difícil: eles exibiam nas redes sociais bens incompatíveis com seus rendimentos, como os 17 veículos apreendidos pelos policiais.
“Em muitos municípios, ainda há a falta de transparência e baixo controle social”, avalia o consultor Luiz Navarro. Especialista em compliance (medidas anticorrupção), ética e governança corporativa, Navarro afirma que, enquanto não forem adotadas práticas como as Leis Anticorrupção e de Acesso à Informação, o problema vai perdurar.
“Se isso não acontece, é um sinal de que não querem se aprimorar”, diz Navarro, um dos articuladores das duas leis, ex-secretário executivo de Prevenção da Corrupção e Informações Estratégicas e ex-ministro da CGU. Atualmente, Navarro integra a Comissão de Ética do governo federal, depois de ter passado pelo Conselho Administrativo da Petrobras, para o qual foi indicado após os escândalos que geraram a Lava Jato.

“Não se pagava ninguém sem propina”

Em Vilhena, município de Rondônia com cerca de 100 mil habitantes, a população convive com a movimentação de agentes da Polícia Federal desde julho de 2015. Em 20 meses, a cidade foi alvo de sete operações da PF, que prendeu um ex-prefeito, seu vice, ex-secretários, além de sete dos dez vereadores e empresários.
“Praticamente não se pagava ninguém sem propina”, diz o delegado federal Flori Cordeiro de Miranda Júnior, que comandou as investigações no município. “Onde a gente batia tinha coisa errada”, lembra.
Em uma primeira ação foram presos dois ex-secretários municipais, o chefe de gabinete da prefeitura, entre outros servidores municipais –todos já condenados pela Justiça.
Ao se aprofundar no submundo das fraudes, em outubro de 2016 a PF chegou ao prefeito José Luiz Rover (PP), preso durante uma varredura na sede da prefeitura. Em liberdade desde junho de 2017, o prefeito negociou delação premiada e o processo segue em segredo de Justiça. Seu advogado, Josemário Secco, disse que não pode informar sobre a homologação do acordo nem sobre seu conteúdo.

Responsável por revelar as fraudes, o ex-vice-prefeito do município Jacier Rosa Dias (PSC) passou de herói a vilão em poucos dias. Ele foi preso em um esquema de regularização de lotes montado na Câmara de Vereadores. Jacier passou um mês detido e hoje responde ao processo em liberdade.
Sua defesa afirmou que não há indícios de autoria nem de materialidade delitiva e alegou que, como vice-prefeito, Jacier não tinha poder para decidir ou interferir na aprovação de loteamentos na cidade. Seus advogados também afirmam que ele adquiriu lotes, mas não sabia da prática criminosa dos parlamentares.
Na Operação Tropa de Choque, em outubro de 2016, a PF colocou na cadeia sete dos dez integrantes do Legislativo. Nem o então presidente da Casa, Ângelo Donadon Júnior (PSD), escapou.
Integrante de uma família de políticos processados, cassados ou presos, Junior Donadon, como é conhecido, foi preso três semanas após ser reeleito. Após cinco meses, saiu com tornozeleira eletrônica. Tomou posse, mas renunciou ao mandato em maio enquanto a Câmara discutia sua cassação. Júnior Donadon e os demais vereadores presos negaram participação no esquema.
A saga dos eleitores de Vilhena não terminou aí: um dos suplentes que assumiu uma vaga na Câmara foi Antônio Marco Albuquerque (PHS), conhecido como Marcos Cabeludo, que já tinha sido preso por abuso de poder econômico e estava em liberdade condicional.
Candidato à reeleição, foi preso de novo em novembro acusado de cobrar propina de um empresário do ramo imobiliário para que o Poder Legislativo aprovasse a implantação de um loteamento na cidade.

Além disso, apesar das prisões, as fraudes não pararam. Um empresário, por exemplo, voltou para a cadeia durante a Operação Nepartes, por fraudar –de novo– uma licitação para o fornecimento de carne para a prefeitura. Não bastasse a reincidência do empresário, o produto estava impróprio para consumo humano.
As buscas também revelaram a compra de seis ônibus escolares para a prefeitura, todos com mais de dez anos de uso. Descartados para o transporte coletivo urbano, a empresa se livrou dos carros velhos e os vendeu ao município, que ficou com um prejuízo de R$ 1,2 milhão.

Superlucro

No Pará, o que poderia ser uma oportunidade única para mais de 750 estudantes carentes da rede pública acabou se transformando em um bom negócio para duas empresas.
Elas foram contratadas sem licitação pela Prefeitura de Marituba, a 11 km de Belém, para ministrar aulas de inglês nas escolas e fornecer o material didático, composto por três livros e três DVDs.
Além da dispensa de licitação, a Operação Lesson descobriu que o esquema envolvia empresários e servidores públicos apontados como responsáveis pelo superfaturamento de preços, emissão de notas fiscais falsas e pagamentos por serviços não prestados.

“Cada um dos kits, adquiridos pelas firmas a R$ 36, foi vendido ao município por R$ 1.800 –um superfaturamento de quase 5.000%”

Segundo o Ministério Público Federal no Pará, as irregularidades tiveram aval da Secretaria de Educação de Marituba e, apesar do superfaturamento, o município adquiriu 500 livros desses fornecedores a R$ 900 mil.
Em nota, a Prefeitura de Marituba disse que não tinha contrato de serviço com a empresa envolvida e que contribuiu com as investigações, disponibilizando os documentos necessários para comprovar a legalidade do município no processo licitatório.
Outros municípios que também fizeram negócios com as mesmas empresas foram alvo da Operação Lessons, realizada em junho do ano passado pela Polícia Federal. Oito pessoas, incluindo servidores públicos, foram presas e denunciadas à Justiça pelo MPF. Todos os envolvidos respondem ao processo em liberdade.
Tem fraude que parece pequena e causa um estrago enorme, especialmente na região Norte, onde o desvio de dinheiro no caixa de uma escola pode ser tão relevante quanto uma fraude em licitação pública.
No Amapá, por exemplo, a PF entrou em ação para estancar um rombo no caixa de uma escola, de onde alguns funcionários levaram R$ 400 mil da merenda dos alunos.
Nem a pesca artesanal escapa da corrupção. Criado para ajudar os pescadores durante o período em que a atividade é proibida, o Seguro Defeso envolveu fraudes que chegaram a R$ 1,6 bilhão nos últimos cinco anos. Em dezenas de operações, a PF, a CGU e os ministérios do Trabalho e da Agricultura desvendaram esquemas milionários que poderiam ser ainda maiores.
O Seguro Defeso é um benefício mensal, equivalente a um salário-mínimo, concedido a pescadores artesanais durante o período de reprodução dos peixes, quando a pesca é temporariamente proibida. Somente no Pará, a Operação História de Pescador revelou, em 2016, desvios estimados em R$ 10 milhões, mas uma nova auditoria da CGU apontou um prejuízo potencial muito maior, de R$ 185 milhões. Em apenas um mês, o programa recebeu
inscrições de 55 mil pessoas. Os desvios também envolviam dirigentes sindicais e servidores públicos. Alguns deles estavam entre os 17 presos em março de 2017 em sete cidades paraenses.
“O que é de estarrecer mesmo é que, não raro, os servidores envolvidos aludem aos crimes com grande escárnio, em tom jocoso, afrontando os órgãos de controle, a Justiça como um todo, e a própria sociedade”, afirmou o procurador da República Reginaldo Pereira de Trindade.