CALA A BOCA, DORSEMIRA !

Por Ribamar Bessa(*):
Os fariseus da língua querem calar definitivamente a cheirosa Dorsemira, uma bela caboca de Urucará, no Amazonas, cujo corpo rescendia a priprioca e capim-limão, na época em que namorou o poeta Thiago de Mello a quem não teve vergonha de mostrar a “perseguida”. Dorsemira está proibida de dizer que ama ou que amou o poeta por um decreto publicado, nesta sexta-feira, no jornal O Globo, assinado pelos críticos do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM).
Esses críticos, como se tivessem acabado de descobrir a pólvora, anunciaram, escandalizados, na primeira página do jornal da família Marinho, que houve “DOUTRINAÇÃO NA PROVA DO ENEM”. O tom é de denúncia, de quem revela que existe algo podre  no reino da Dinamarca. Ah, mas O Globo não se intimida e, intrépido, se insurge contra a lavagem cerebral de nossos jovens, exibindo as “evidências do crime” já na manchete da matéria que ocupa página inteira: “ENEM FAZ A MESMA PERGUNTA OITO VEZES” (p.22).
O que é mesmo que o Enem tem a ver com a Dorsemira? Quando namorou o Thiago, ela costumava ir para as aulas de datilografia na Escola Underwood usando um vestido de jersey sobre uma anágua branca de algodão, blusa godê e sutiã Vivien de tricoline, que era “uma pausa no olhar”, como cantava o jingle na Rádio Baré. Mas deixemos, por enquanto, a Dorsemira de sobreaviso, em stand by. Te proponho um pacto, leitor (a): vamos ver, antes, o que aconteceu com o Enem. Prometo o retorno dela, mais adiante, já como datilógrafa profissional da firma J.G. Araújo.
Os fariseus da língua
Depois da divulgação do gabarito do Enem, o jornalista Lauro Neto “descobriu” oito questões “condenáveis” na prova de Linguagens e Códigos. Denunciou para Deus e o mundo que tais questões promoviam, de forma subreptícia, os erros de português, pois “mostram uma preocupação excessiva em defender o uso oral e coloquial da língua em detrimento da norma culta”. Quem confirma isso é a professora Regina Carvalho, a quem o jornalista recorre como autoridade, justificando que ela “dá aulas de Língua Portuguesa no Colégio Santo Inácio”:
– “Há uma indução subliminar” – ela diz. “Acho problemático, porque são muitas questões sobre o mesmo assunto. Do ponto de vista pedagógico, não se deve cobrar um mesmo assunto com tanta insistência. Do ponto de vista gramatical, nada é pedido praticamente. É uma contradição, porque na hora de fazer a redação os professores cobram a norma culta dos estudantes e se agarram a ela para justificar a correção”.
Carvalho vê contradição naquilo que é complementação. A professora do Santo Inácio critica até mesmo o uso de textos de escritores consagrados como Manoel de Barros e Rubem Alves, quando eles empregam “palavras e expressões inadequadas na norma culta”. Para ela, “a lógica de legitimar o uso coloquial por meio de autores consagrados é similar à defesa do polêmico livro ‘Por uma vida melhor’, distribuído pelo MEC no Programa Nacional do Livro Didático, que contém frases com construções como nós pega o peixe“.
Os ataques ao Enem insistem que as perguntas da prova são contraditórias, pois de um lado, “mostram a fala coloquial na voz de poetas e escritores consagrados, quase como que um modelo” e, de outro, desprezam “livros maravilhosos didáticos que não são aceitos devido a uma política intencional do MEC”. Acham que aí tem truta.
Trata-se de um recado para todas as dorsemiras do Brasil. Se escritores consagrados são censurados por usarem o português coloquial, imaginem a Dorsemira, coitada! Meu colega na UERJ, Claudio Cezar Henriques, com quem simpatizo, mas de quem discordo, também foi entrevistado, endossando o coro dos críticos. Ele lamenta “o destaque dado a textos que mostram usos populares ou regionais de nossa língua”, o que considera “demagogia linguística” e pergunta:
– “As universidades querem alunos que tenham capacidade para ler e escrever textos acadêmicos e científicos ou querem alunos que saibam reconhecer variedades linguísticas?”
A pergunta está mal formulada. Não é uma relação de exclusão: ou isso ou aquilo. Mas de inclusão: isso e aquilo. A universidade quer que os alunos, além de escreverem textos acadêmicos, sejam capazes de reconhecer e de respeitar a diversidade linguística. Por isso, os comandos e enunciados da prova estão escritos na norma padrão. É por isso que se exige redação e respostas dentro desta norma. Quanto ao registro coloquial, o exame está apenas apresentando amostras da diversidade linguística e não exigindo que se transformem em “quase como que um modelo”. É simples assim.
A “perseguida”
Para aparentar isenção, o jornalista decidiu fazer um contraponto. Entrevistou por email o linguista Marcos Bagno, autor de “Preconceito linguístico”, citado na prova do Enem, a quem perguntou “se a sociolinguística não estaria se sobrepondo à gramática”. O linguista, já escaldado com as constantes edições que deturpam sua fala, respondeu:
– “Sua pergunta não faz o menor sentido. Não existe essa oposição que você insinua entre “sociolinguística” e “gramática”. Também não existe antonímia entre “uso oral e informal” e “norma culta”: uma manifestação culta, falada ou escrita, pode ser perfeitamente informal. Como sempre, vocês, jornalistas, sobretudo da mídia conservadora como O GLOBO, procuram apenas justificativas para perpetuar seus pontos de vista reacionários sobre tudo, incluindo o ensino. Quando vão tratar de linguagem, a falta de preparo se revela de maneira patente”.
O Globo reproduziu ainda uma postagem de Marcos Bagno no facebook, onde ele, já sem paciência, comenta que “uma pergunta tão imbecil só merece uma resposta irônica”. Nessa luta pelo reconhecimento da diversidade linguística afloram paixões, mas também questões ideológicas e econômicas, com componentes teóricos que envolvem o próprio conceito de língua e de norma com o qual se opera.
A língua, entre outras coisas, é um bem de consumo, um negócio editorial com investimento de muita grana em dicionários, gramáticas, livros didáticos, quase todos escritos com a perspectiva do policiamento da fala. Os livros didáticos existentes no mercado sempre cagaram regras e policiaram a linguagem, tentando engessar a língua.
Agora, felizmente, o MEC, dialogando com as ciências da linguagem, aponta para desfazer esse erro secular, afirmando que as pessoas frequentam diferentes registros, todos eles respeitáveis, e não apenas a norma denominada “culta”. Questiona-se o uso do próprio termo “norma culta” para designar a “norma padrão”, como uma impropriedade, na medida em que o falar popular também expressa cultura. Essa postura do MEC, que foi chamada de “doutrinação” pelos fariseus da língua, fere interesses comerciais.
E é aqui que a Dorsemira volta ao cenário para mostrar que não tem vergonha de exibir a “perseguida”. A sua forma de falar, marcada pelo regionalismo, pelo popular, pelo coloquial, é a verdadeira “perseguida”, caçada a pau, como se fosse um rato de esgoto. O poeta Carlos Drummond de Andrade já havia chamado a atenção:
– “O purista procura cercear a língua toda vez que ela tem um acesso de vitalidade. A língua portuguesa devia dispensar seus defensores pedantes e defender-se por si mesma”.
Há muitos anos, quando retornava da aula noturna do Ginásio, em Manaus, o poeta Thiago de Mello costumava trocar uns amassos – na época se falava “acochos” – com a caboca Dorsemira, num desvão da rua Japurá. Foi depois de uma dessas sessões, que Dorsemira exibiu sua fala “perseguida”, dizendo:
– Eu acho que nós gosta é já demais.
Thiago nunca mais esqueceu da frase, tão presente como o cheiro da caboca Dorsemira, que se abastecia anualmente de ervas aromáticas para seus banhos-de-cheiro no “Buraco Cheiroso”, lá na travessa Frutuoso Guimarães, em Belém, quando ia para o Ciro de Nazaré, em outubro.
Da mesma forma que alternava o uso do sutiã Vivien com o do corpete, que além do peito cobria até a cintura, a cheirosa Dorsemira durante o dia datilografava a correspondência comercial da firma J.G. usando a norma padrão do português, mas, de noite, ali, no escurinho, o que valia mesmo era seu português coloquial de Urucará. Diante da ordem dos perseguidores da língua: “Cala a boca, caboca”, ela deu a resposta que surge nas brincadeiras de criança em toda a Amazônia:
– Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu!
P.S. – Dorsemira não é personagem de ficção. Sua história já foi contada por Thiago de Mello (http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=918) O que fiz foi apenas colocar um cheirinho de pripioca nela.
(*) É escritor, jornalista e professor.