Apertem o cinto : ”O governo vai ter de aumentar a carga tributária”

Reproduzido de O Estado de S.Paulo, por Fernando Dantas:

ENTREVISTA – Samuel Pessôa, economista da Tendências – Werther Santana/AE

Sob controle. ‘Acho que não há grandes desperdícios no Estado brasileiro’, diz Samuel Pessôa

O economista Samuel Pessôa, da consultoria Tendências, está perplexo com a falta de ação da presidente Dilma Rousseff diante dos problemas que se acumulam na gestão da economia.

Ele avalia que Dilma está na culminância do seu capital político e deveria, como Lula em 2003, fazer as “maldades” necessárias para tornar possíveis os múltiplos objetivos perseguidos pela política econômica: crescimento, controle da inflação, câmbio competitivo para a indústria e uma política de grandes aumentos do salário mínimo a partir de 2012.

De forma polêmica, Pessôa diz que a solução é aumentar a carga tributária, embora fosse melhor não ter o forte gasto da atual regra de aumento do mínimo. A seguir, a entrevista:

Como o sr. vê a política econômica hoje?

Acho que a qualidade da política econômica está se deteriorando rapidamente. Na política monetária, o Banco Central resolveu brigar com o mercado no que diz respeito à formação de expectativas, aparentemente abraçando teorias superexóticas de que os juros são altos porque existe uma convenção no mercado que força as estimativas acima do que seria razoável. O que obrigaria o Banco Central a praticar juros muito altos. Para mim, a inflação está saindo de controle. É possível que eu esteja muito pessimista e o Banco Central tenha razão. Mas olhando o mercado de trabalho do jeito que está, o subíndice de inflação de serviços com 8,5% acumulado em 12 meses, acho que não é o caso. Acho que a inflação não vai convergir para a meta. E a gente vai ter em algum momento do ano que vem um choque de juros, o que é péssimo.

E quanto ao câmbio?

Certamente tem também (uma deterioração) na política cambial. A gente hoje está vivendo na prática quase um regime de câmbio fixo. A compra de reservas é feita para defender uma certa paridade que evidentemente os fundamentos não permitem e, portanto, me parece que a Fazenda está perdendo essa batalha. É claro para o mercado que o câmbio é esse aí ou para baixo, porque os fundamentos puxam para baixo, e não para cima.

Quais fundamentos? O câmbio não está sobrevalorizado?

Houve um choque positivo no preço das commodities que o Brasil exporta, o que aumenta as divisas que entram no País. Se a gente fizer um calculozinho de câmbio real de equilíbrio em função de passivo externo e do preço de commodities, vamos concluir que o câmbio hoje está desvalorizado em 5%. Então o mercado enxerga os fundamentos e sabe que o câmbio é para baixo. Por outro lado, o diferencial de juros é muito alto. O ganho de colocar dinheiro aqui dentro é muito alto e a pressão para a entrada de recursos é muito grande.

Como o sr. analisa as medidas no mercado cambial e em outros mercados?

Eu acho que não é um problema do Ministério da Fazenda. Existe uma delegação de objetivos mutuamente inconsistentes nos ombros da Fazenda. São objetivos impossíveis de serem atingidos simultaneamente. É muito difícil combater a inflação, garantir a regra de aumento do salário mínimo e os avanços sociais, evitar que o câmbio se valorize e proteger a indústria. A conta não fecha.

E por que não fecha?

Para combater a inflação, tem o instrumento dos juros, a política monetária mais restritiva. Como estamos num período em que há forte pressão para valorizar o câmbio, isso ajudaria a reduzir a pressão inflacionária. Mas aí não pode deixar o câmbio valorizar porque tem de salvar a indústria. E prejudica-se o objetivo de controlar a inflação. Aí tenta-se segurar a inflação com medida macroprudencial. Mas, mesmo assim, os juros ainda são altos, tem uma pressão grande de entrada de capitais, e aí querem impedir que o capital entre. Por outro lado, querem a demanda aquecida, para ter arrecadação para manter a regra de aumento do salário mínimo e a expansão de outros benefícios sociais. Só que essas coisas todas geram excesso de demanda, que pressiona mais a inflação.

Qual seria a solução?

Uma maneira de resolver tudo isso é a presidente Dilma conseguir no Congresso um aumento de carga tributária: recria a CPMF, aumenta impostos sobre royalties de mineração, impostos indiretos, algo assim. Aí ela arrecada algo entre 1,5% e 2,5% do PIB a mais, e com isso tem recursos para fazer um superávit primário maior, que ajuda no combate à inflação. Tem recurso para manter a regra do salário mínimo e outros gastos sociais, e ainda sobra um pouquinho para manter compra de reservas.

Mas aumentar a carga tributária não é ruim?

Reduz a capacidade de crescimento a longo prazo. Mas, dadas as circunstâncias do País hoje, eu sou a favor. Acho que, como a gente aprovou a regra de aumento de salário mínimo até 2014, tem de aumentar a carga tributária. Veja bem, o ideal é que não houvesse a regra de aumento do salário mínimo, e não tivesse de haver aumento de carga tributária.

Mas não poderia haver cortes em outras despesas públicas?

Acho que não há grandes desperdícios no Estado brasileiro. Desde o governo de Fernando Henrique, há um grande esforço de controlar o custeio da máquina, que tem crescido menos que o PIB nos últimos anos. O gasto público aumenta muito na Previdência, nos benefícios sociais, no custeio de saúde e educação e no investimento. É preciso ressalvar que eu acho que uma agenda de redução de custo e aumento da eficiência do Estado brasileiro tem de ser feita o tempo todo. Mas uma redução mais significativa de custo passa por uma repactuação de direitos e deveres. Temos de repensar toda a estrutura de direito administrativo, toda a institucionalização do Estado brasileiro, toda a forma de contratação, demissão, promoção e remuneração de pessoal. Acho que, com as regras vigentes, o Estado brasileiro não desperdiça. Para diminuir o custo dele, tem de mudar a regra. E se uma redução de custo requer uma mudança de regra, eu não chamo isso de desperdício, eu chamo isso de política. Porque a gente não administra um Estado como administra uma empresa.

Por que Lula não enfrentou as escolhas difíceis que Dilma tem de fazer agora?

Na verdade, o governo Lula fez uma pequena maldade no comecinho. Não só fez um ajuste fiscal duro em 2003, mas aumentou bastante a carga tributária. Naquela minirreforma tributária que mudou a Cofins e a PIS do regime cumulativo para o de valor adicionado, as alíquotas foram recalculadas acima do que manteria a arrecadação. Além disso, esses tributos foram estendidos à importação.

Mas, depois disso, não houve mais necessidade de “maldades”?

Vários fatos permitiram que Lula não tivesse de fazer muitas escolhas difíceis. O câmbio no início do governo Lula era muito desvalorizado. Ao longo do seu governo, houve um contínuo processo de ganho de termos de troca, que fez com que o câmbio se valorizasse. Essa valorização do câmbio, como vinha de um nível muito desvalorizado, não gerou um problema muito grande para a indústria, mas ajudou a segurar a inflação. Também houve uma aceleração no crescimento da produtividade que, na minha interpretação, foi resultado da maturação das reformas institucionais do governo Fernando Henrique e durante a gestão do Antonio Palocci na Fazenda. E, além disso, houve um novo forte aumento da carga tributária sem aumento de alíquotas ou novos impostos, apenas pelo processo de formalização. Acho que nenhum desses fatores vai continuar na mesma medida no governo Dilma.

Como o sr. vê a atitude de Dilma diante dos atuais problemas?

Me surpreende que ainda não tenha tomado as decisões difíceis que precisa tomar. Me surpreendo porque ela está com um capital político elevadíssimo. As pesquisas mostram que a pessoa dela é muito respeitada por todos os segmentos da sociedade. E ela não está usando esse enorme capital político para resolver as inconsistências da política econômica.

O sr. tem alguma interpretação para isso?

Bem, a leitura de Maquiavel indicaria que é melhor fazer rapidamente as maldades no começo, como o Lula. Uma possibilidade é que a ideologia da presidente a esteja levando a evitar esse ajuste. Tudo o que eu penso é baseado na hipótese de que aqueles objetivos de política econômica não podem ser atingidos simultaneamente. Mas a Dilma é economista e estudou na Unicamp, uma escola que tem uma visão do mundo muito diferente da minha. É uma visão não só próxima dela, mas também do ministro Guido Mantega. Uma visão de que é possível fazer aqueles objetivos serem mutuamente consistentes se a gente mudar o padrão de política econômica e interferir diretamente nos mercados.

Quais seriam os exemplos?

Os mecanismos de restrição à mobilidade de capital são o maior exemplo. Outro foi a criação daquele imposto de 5% sobre a exportação de açúcar para estimular as pessoas a produzirem etanol aqui dentro. As medidas macroprudenciais também representam uma interferência nos mecanismos de mercado. Eventualmente havia um exagero no crédito, houve alguma medidas razoáveis, mas acho que, de maneira geral, não faz sentido combater a inflação hoje no Brasil com medidas macroprudenciais. A forma mais eficiente de fazer isso é com a Selic. No curto prazo, todas essas medidas podem funcionar, mas seus impactos tendem a ser transitórios. E elas distorcem a economia e reduzem o crescimento a médio prazo.