Um João chamado Barbosa

Por Ribamar Bessa Freire:
Era um gozador, embora não tivesse motivos para achar a vida engraçada. Nascera no lugar errado: a Colônia Oliveira Machado, um viveiro de arigós pobres na periferia de Manaus. E no ano errado – 1914 – justamente quando o preço da borracha começou a despencar, aumentando a miséria nos seringais e cidades da Amazônia. A Primeira Guerra Mundial trouxe ainda mais fome para a região.

No final da guerra, a desnutrição e a gripe espanhola de 1919 mataram muitas pessoas em Manaus, entre as quais o agricultor Raimundo Barbosa. A viúva, dona Filomena, uma cearense de Quixeramobim, ficou na maior pindaíba. Comeu a mandioca que o diabo ralou. Alimentava os seus quatro filhos – João era o caçula – com chibé de farinha, molhada com xarope de Bromil, distribuído gratuitamente. “Nunca uma propaganda foi tão verdadeira: Da horrível tosse que me pôs febril, me salvei com um milagroso frasco de Bromil”, filosofava ele, anos depois.

Dois irmãos não aguentaram. Morreram. – “Onde pobre arma a rede, tem sempre uma goteira”, ele dizia, sem nenhuma amargura. Não era sequer uma queixa, apenas uma constatação. Logo depois, Dona Filó deixaria a Colônia para armar a sua rede e as dos órfãos num casebre, no terreno atrás do Colégio D. Bosco, propriedade do Bispado de Manaus, que o cedeu em troca de serviços domésticos.

Neste período, João, um dos sobreviventes, foi auxiliar de sacristão da igreja de São Sebastião, se é que sacristão tem auxiliar. O certo é que, com os padres capuchinhos, ele aprendeu o catecismo, o gosto pela literatura, um pouco de latim-de-missa e de italiano e a comer macarrão. Comida, para ele, era talharim. O resto era conversa sem fim.

Pedindo penico

Filho de viúva ficou, por isso, dispensado de servir o Exército. Arrimo de família. Na década de 30, arranjou trabalho como balconista na Loja Leão, em frente ao Mercado Adolpho Lisboa. Vendia tecidos, aprendeu a reconhecer toda espécie de pano ou fazenda usada na confecção de roupa. Daí, foi ser vendedor na “Casa 22 Paulista”, Rua da Instalação, onde continuou a desenvolver a arte da sedução.

Durante a Segunda Guerra Mundial, com a formação do “exército da borracha”, gringos voltaram a passar por Manaus, reaquecendo o comércio local. O “turco” Jezzini tinha loja de fazendas na Rua Sete de Setembro, detrás da Matriz. Precisava de vendedor experiente, bom de papo, que conhecesse tecidos e que dominasse línguas estrangeiras. João Barbosa apresentou-se como se fosse a personificação da própria ONU:

– Conheço latim, falo italiano, espanhol e francês e me viro em inglês.

Poliglota, foi contratado na hora. Dias depois, entra na loja o primeiro gringo. Era um francês. Chegara o momento do teste da verdade. O velho Jezzini, esbaforido, chama Barbosa, que era capaz de ficar emitindo um conjunto de sons parecidos com a língua francesa, com um impressionante sotaque de Jean Gabin. Não pensou duas vezes:

Cachorrí, tré-jolí, gê né sé pá, antandê-vu parlê françé, merci bô cu, né pá dequá … e continuou derramando um dicionário de palavras oxítonas, pronunciadas com tanta segurança, que impressionou os que ouviram.

O francês, embasbacado, é claro, retrucou qualquer coisa que Barbosa, é claro, decodificou a seu modo, respondendo no mesmo tom. Foi um tal de diga-lá, digo-eu, diga-você. O diálogo fantástico e surrealista prosseguiu por algum tempo, até que, visivelmente irritado, o francês vai embora, mas antes diz qualquer coisa do tipo:

Merde, alors! Vous êtes complètement dingue!

O velho Jezzini, que a tudo assistira, quer saber porque o francês foi embora sem comprar nada:

O que é que ele queria, Babósa!

Penico! Ele queria penico, seu Jezzini! Eu expliquei que isso aqui era uma loja de tecidos. Que ele procurasse lá na Central de Ferragens.

Um pai galinha

Era um humor ingênuo. Ele chamava de Beatriz a qualquer mulher jovem, cujo nome desconhecia. Engatilhava um versinho: “Beatriz, não foi feliz porque não quis. E a Lídia não é porque não quer”. Um dia tomou umas e outras, vestiu a batina do padre Manoel Bessa, seu cunhado e, para a alegria das moças, saiu pelo beco confessando todas as beatrizes da rua. Foi uma festa.

Nunca saiu de Manaus. Minto. Saiu uma única vez, quando conquistou o título de campeão de dominó do torneio do Apostolado da Oração. Foi para Itacoatiara enfrentar os campeões locais. Era uma viagem quase internacional. Devia ficar três dias. Não ficou nem duas horas. Pegou o primeiro barco de volta. Entrou em casa de madrugada, aos prantos, beijando filho por filho, em cada rede, dizendo:

– O papai nunca mais faz isso com vocês.

Depois disso, só “viajou” através das leituras dos romances. Gostava de Victor Hugo (Os Miseráveis), Herculano (Eurico, o Presbitero), Macedo (A Moreninha). Deixou como herança o gosto pela literatura e a alegria de viver como uma forma de resistência contra o sofrimento cotidiano. Ao contrário de Beatriz, ele foi feliz porque quis. Morreu contando piada.

Costumava dizer: “Nasci nu e pobre, agora estou vestido e tenho 12 filhos”. Eu sou um deles, por isso hoje, 20 de outubro, dia em que completaria 99 anos. Reescrevo esse texto publicado em 1995, pedindo desculpa aos leitores que já o conheciam.