UM ÍNDIO MUSEÓLOGO NA CANOA DAS ALMAS

Por Ribamar Bessa:
Contra o esquecimento global, proponho um recurso local: a criação de um livro no qual nós, que aqui ficamos, iremos anotando o nome de cada amigo que embarque na canoa das almas, na viagem sem volta para o mundo do invisível, até chegar a nossa vez de partir. Dessa forma, eles não serão esquecidos. Pelo menos, era assim que funcionava com gente viva, de carne e osso, que era despachada em canoas de Belém do Pará para os sertões da Amazônia, nos séculos XVII e XVIII, em busca de escravos indígenas e de cacau. Havia o Livro de Registro das Canoas que documentava tudo.
Cada canoa que saía ou entrava em Belém era inscrita num caderno grosso, com uma relação daquilo que transportava. Sabemos disso porque um desses manuscritos, um “tijolo” com duzentas folhas rubricadas, foi encontrado no Arquivo Público do Pará pelo antropólogo Márcio Meira, que organizou, em 1993, sua transcrição, digitação e publicação. Esse livro contém “termos”, ou seja, declarações que tinham valor legal, feitas por alguém, trazendo informações valiosas sobre a história do comércio de escravos indígenas, com a descrição física dos índios capturados e as nações às quais pertenciam.
Entre os diversos tipos de “termos”, um deles chama a atenção:  o “Termo de Lembrança”, um documento que registrava, por escrito, tudo aquilo que não se queria esquecer. Um deles, de 1741, lembra a existência de três escravos “que vieram do sertão sem se saber quem fosse seu dono ao certo”, entre eles uma índia de 15 anos, cheia de cicatrizes por todo o corpo, até na raiz do cabelo, aprisionada no Rio Negro e arrastada para Belém. Os três foram encaminhados para a Aldeia Mortiguara, administrada pelos jesuítas, onde “ficarão em depósito até aparecer o dono” (Documento 48, folha 34).
Termo de Lembrança
Ora, se o Livro das Canoas deu certo para lembrar os índios que tiveram seus corpos escravizados, por que não funcionaria com índios cujos espíritos se libertaram? No Livro que acabo de criar, registro, então, o “Termo de Lembrança da última viagem do tikuna Constantino Füpeatücü” que embarcou há um mês, para que a gente dele não esqueça. Aqui vai a transcrição seguindo o modelo do século XVII.
Aos 19 dias do mês de outubro do ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2012, lanço eu, neste Livro de Registro, o Termo de Lembrança do embarque na Canoa das Almas de Constantino Ramos Lopes, 46 anos, filho de Francisco Fernandes Lopes e Alice Ramos, nascido no dia 21 de janeiro de 1966, na Ilha de São Jorge, município de Benjamin Constant (AM). Ele foi batizado com esse nome de imperador romano, mas seu nome mesmo, de verdade, era Füpeatücü, que em tikuna significa “asa erguida”.
Membro do clã Mutum, Constantino Füpeatücü, nesse dia, trouxe para a Canoa das Almas, a sua história de vida na Aldeia de São Leopoldo, onde morou muito tempo e de cuja escola foi professor. Seu espírito carregava uma bagagem valiosa: cursos, oficinas, palestras e conferências que ministrou em várias cidades do Brasil e no exterior, livros que produziu, exposições que organizou no Peru, na Colômbia e em vários países da Europa e, sobretudo, as coleções etnográficas e o museu que ajudou a criar, bem como as lutas que travou em defesa da cultura ticuna.
Este Termo de Lembrança registra a primeira mala que entrou na Canoa das Almas trazendo os conhecimentos interculturais adquiridos por Constantino, tanto os tradicionais que lhe foram transmitidos oralmente pelos velhos e sábios ticuna, entre eles Pedro Inácio, como os novos conhecimentos aprendidos no Curso de Licenciatura para Professores Indígenas do Alto Solimões, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), concluído em dezembro de 2011. Esses conhecimentos lhe permitiram atuar como membro do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena e como coordenador deste setor na Secretaria Municipal de Educação de Benjamin Constant.
O Livro registra um paneiro cheio de fichas de avaliação feitas pelos que foram professores de Constantino ao longo de sua formação (*), entre eles Jussara Gomes Gruber, coordenadora do Curso de Formação de Professores Indígenas e responsável pela disciplina de Arte-Educação. Lá está transcrito o que escreveu a doutora Marília Facó, linguista do Museu Nacional, recordando as aulas na aldeia Kanimaru, quando Constantino, que concluiu o Curso de 1º grau em 1987, começava seus estudos.
– “Constantino era” – escreveu Marília – “um jovem talentoso, olhos brilhantes e curiosos, características às quais viriam se juntar demonstrações de coragem e dinamismo, além de uma enorme capacidade de construção”.
A Canoa das Almas começou a ficar cheia, quando recebeu os diversos livros que Constantino construiu, coletivamente, desde 1987, como produto dos diversos cursos e oficinas que fez no Centro de Formação de Professores Ticuna-Torü Nguepataü, na Aldeia de Filadélfia, entre outros o Livro de Leitura e Caderno de Exercícios na Língua Ticuna, o Livro das Árvores e três volumes dos Mitos Ticuna da Coleção Eware.
Sobrava pouco espaço na Canoa das Almas, quando foi feito o registro dos projetos de arte e educação desenvolvidos pela Organização Geral dos Professores Ticuna Bilingues (OGPTB), da qual Constantino foi um dos fundadores e presidente entre 2006 e 2010. Mas a canoa ficou lotada mesmo com as coleções etnográficas do Museu Maguta – o primeiro museu indígena do Brasil, do qual ele foi curador e diretor.
Etnomuseologia
O Termo de Lembranças registra foto do Museu Maguta, instalado em Benjamin Constant (AM), em uma casa de arquitetura simples, com varandas ao redor, cinco salas de exposição, uma pequena biblioteca, cercada por um jardim. Lá dentro, as coleções formadas, em grande parte, com os trabalhos de artistas ticuna: máscaras rituais, pintura em painéis decorativos de entrecasca, esculturas de madeira e de coco de palmeira, colares, cestos, redes e bolsas, além de artefatos, hoje já em desuso, que foram reconstituídos a partir de fotografias antigas pertencentes a museus etnográficos.
São quase 500 peças, todas registradas, organizadas, documentadas e devidamente fichadas por Constantino, que foi capacitado para exercer a  guarda do acervo e por sua dinamização. Ele participou da equipe que preparou e montou a primeira exposição do Museu, aberta ao público em 1991. Tornou-se, na prática, o primeiro índio museólogo, completando sua formação em visitas a museus etnográficos em todo o Brasil e em diversos países da Europa: Holanda, França, Noruega, Itália, Áustria.
Este Termo de Lembranças registra diversas palestras de Constantino realizadas em eventos em diferentes cidades brasileiras: em 1995, no I Encontro Nacional do Conselho Internacional de Museus (ICOM-Brasil), em Petrópolis (RJ), quando o Maguta recebeu o prêmio de Museu Símbolo do ano e no II Encontro Internacional de Ecomuseus (Rio-2000), assim como sua participação na organização e montagem da exposição Arte Ticuna, no Museu de Folclore Edison Carneiro (Rio-1996).
Entraram na Canoa das almas também os registros das palestras proferidas no exterior: em Stavanger-Noruega, na Conferencia Mundial de Museus (1995); no Seminário “La Scuola della Foresta”, organizado pelo Ministério da Educação da Itália, em Roma (1999); na Exposição “Amazônia” realizada no Tropenmuseum, em Amsterdam, Holanda (1996); no Seminário organizado pela Rainforest-Austria, em Viena (2000) e na Universidade de Nápoles, Itália (1999), onde atuou ao lado das professoras ticunas Hilda do Carmo e Adélia Bittencourt.
Tchauenee, cunama!
Finalmente, o Termo de Lembrança registra que as atividades de organização do Museu Maguta iniciaram em 1988, num momento crítico em que os Ticuna estavam mobilizados na luta pela defesa de seu território, enfrentando-se até mesmo com grupos armados. Dessa luta, Constantino deu conta, em 1995, quando por mim convidado, ele deu uma aula de Etnohistória, na UERJ, no turno da noite.
No meio da aula, um apagão deixou a universidade nas trevas. As salas se esvaziaram, exceto uma. Lá, os estudantes pediram que ele continuasse. Na escuridão, era apenas uma sombra relatando, com voz anasalada, o episódio ocorrido em 28 de março de 1988: o massacre do igarapé do Capacete.
Ele contou como os índios, desarmados, reunidos na aldeia, foram cercados e surpreendidos por pistoleiros que começaram a atirar. As crianças lançavam gritos de desespero, protegidas pelos adultos que, com seus corpos, faziam um escudo humano em volta delas. No meio do tiroteio, corpos começaram a cair. No final, havia 14 mortos, 23 feridos, 10 desaparecidos, todos eles ticuna, o que repercutiu internacionalmente.
Constantino lembrou, com respiração ofegante, como foi ferido por quatro balas que ficaram permanentemente alojadas em seu corpo e seriam depois levadas com ele na sua última viagem. Sua voz cortava a escuridão, intercalada por pausas dolorosamente prolongadas, que criavam um silêncio eloquente. Os estudantes de História escutavam estarrecidos aquele documento vivo, em cujo corpo a história havia deixado o seu registro, com sangrenta caligrafia.
Essa mesma história ele narrou para sua amiga Jussara Gruber, numa noite de chuvinha fina e interminável. “A história ia se desenrolando como um filme tal a riqueza de detalhes. Foi quando ele me disse: eu não tenho medo de morrer” – conta Jussara.
Este Termo de Lembrança teria ainda muitos registros a fazer, mas a Canoa ameaça transbordar. Vamos deixar assim para que ela não alague e possa chegar ao seu destino final: as águas vermelhas do igarapé Eware. Chamamos o piloto do barco, o comandante Tinga, para dar a partida, e Nelcy, a vizinha de Constantino no Beco Castelo Branco para dar seu último adeus. Resta apenas dizer: “Tchauenee, cunama! Meu irmão, até logo!”.
(*) P.S. Foram professores de Constantino em vários cursos, entre outros: Jussara Gomes Gruber (OGPTB), Marília Facó (PPGAS – Museu Nacional), Márcia Spyer (UFMG), Luis Roberto de Paula (UFMG), Lúcia Lopes (PUC/RS); Marineusa Gazzetta (UNESP), José R. Bessa (UNIRIO/UERJ), Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (UFAM), Dorinethe Bentes, Davi Leal, Luciano Cardenes e Sebastião Rocha de Sousa (UEA), Sirlene Bendazzoli (OGPTB/UEA);  João Pacheco (PPGAS – Museu Nacional), Ana Suely Cabral (UnB),  Cloude de Souza Correia (IIEB). Conviveram com ele em eventos e trabalhos de pesquisa: Odalice Miranda Priosti, Alessandra Marques, Helena Cardozo de Oliveira, Valéria Luz da Silva, André Andion Angulo, Christiane M. Lyra e Sérgio Santos, todos do Curso de Museologia da UNIRIO.