Um governo a serviço da desconstrução nacional

Joaquim Nabuco lembrava que o câncer de nossa formação não era a escravidão, como fenômeno em si, mas seu legado. O mesmo se aplica à ditadura militar: a tragédia é sua obra, viva e daninha, que se manifesta na emergência de uma nova ordem autoritária, uma vez mais hegemonizada pela corporação militar. O bolsonarismo, uma patologia,  é, a um só tempo, um fruto dos 21 anos da ditadura e a expressão mais visível da sobrevivência dos piores valores do projeto militar. Denunciar esse legado é a tarefa requerida pelos 55 anos do golpe.

Na residência oficial do embaixador brasileiro em Washington, em jantar a representantes da extrema-direita dos EUA, onde tem sua alma, o capitão declarou haver chegado ao poder “não para construir”, mas para “desconstruir muita coisa’. Sua palavra está sendo cumprida com dedicação e competência exemplares. A economia soçobra e a dignidade nacional foi ao chão.

A indústria de transformação, em queda continuada, conhece seu pior momento nos dois primeiros meses do novo regime: a atividade caiu 0,2% em relação ao ano passado e 54% de todos os setores tiveram queda, acentuando o recuo da participação industrial no PIB, que não passa de ínfimos 11,3% (no final dos anos 80, representava 30%). Já é a menor desde 1947. Estamos em 40º lugar num ranking de 42 países. O total de desempregados – considerados apenas os que deixaram de procurar emprego, isto é, excluídos os trabalhadores informais, o lumpesinato e os miseráveis que perambulam pelas ruas – permanece na assustadora cifra dos 14 milhões e, como vimos, não há sinais de recuperação da economia, donde se torna fácil concluir que esse montante só irá crescer. O que há no horizonte, com a “reforma” antissocial da Previdência, é a perspectiva de restrições ao seguro desemprego. Enquanto isso, o governo insiste em desestabilizar o Mercosul, o principal importador de nossos produtos manufaturados.

Evidentemente, ha método nessa loucura.

As fiesps da vida, dirigidas por figuras menores como os Skaf e quejandos, nada têm a dizer, pois o ‘mercado’ só se interessa pela “reforma” da Previdência – penalizando os desempregados e os velhos e poupando os grandes salários – apresentada como panaceia para nos salvar da tragédia econômica. Essa, todavia, prosseguirá, pois se alimenta da brutal sonegação de impostos que tem na avenida Paulista o seu altar.

A desconstrução prossegue.

O capitão hostiliza os países árabes e, sem consulta à nação, simplesmente supondo que afaga Donald Trump ou atendendo às pressões dos setores mais atrasados do neopentecostalismo associado às alas radicais do sionismo, senão por ambas as razões, anuncia a transferência da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, onde instala um escritório de negócios, ao tempo em que determina à nossa delegação na ONU, contrariando décadas de comportamento exemplar, seguir os EUA nas votações de interesse de Israel. Não satisfeito, arrisca perigosas provocações ao Hamas. O que pretende? Nossa carne e frango têm no mercado árabe seu maior comprador. Empresas brasileiras exportadoras de aves já ensaiam instalar-se em países do Oriente Médio.

Por motivos que não se deu ao cuidado de explicar, o governo se mete no duelo comercial entre EUA e China, como linha auxiliar da política norte-americana. A China, porém, sabemos todos, ignora o capitão porque lhe convém, comprou 86% do total de soja que o Brasil exportou no ano passado, 50% de todas as vendas da Vale, e é um dos maiores importadores da soja brasileira. Tudo, ao final, termina por beneficiar os EUA, nosso competidor nessas e em várias outras commodities.

O crescimento do PIB, em 2019, segundo previsões do ‘mercado’, será inferior a 2%, e o Banco Mundial vê o aumento da pobreza no Brasil “após uma década de ouro de 2003 a 2013”, mas o governo não vê suas consequências na coesão nacional, enquanto estimula o dissenso, provoca os adversários, incita a violência e dissemina o medo.

A desconstrução vai em frente.

O projeto do novo regime não consiste, tão-só, em destruir o presente; trata-se, já agora, de evitar o futuro, esmagando as atividades que asseguram, ou assegurariam, nosso progresso, nossa autonomia, nossa independência. Trata-se de destruir a educação e as expectativas de desenvolvimento em ciência e tecnologia.

O colegiado corporação-mercado, capitão-general, congelou nada menos de 42% do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Dos cerca de R$ 5,079 bilhões previstos no Orçamento para 2019, foram bloqueados R$ 2,132 bilhões. As reservas para pagamento dos bolsistas do CNPq não chegarão a julho.

O Ministério da Educação (MEC), foi abatido com um congelamento de 24,7% das despesas discricionárias. Dos R$ 23,633 bilhões previstos no orçamento para 2019, nada menos de R$ 5,839 bilhões foram contingenciados, restando para empenho, ao sabor os czares do Ministério da Economia, menos de R$ 18 bilhões.

Acresce-se a ocupação, por militares, dos cargos técnicos das autarquias das áreas de ciência e tecnologia e educação, dela afastando os quadros da academia. Assim, o CNPq e a CAPES são campos do ITA e a FINEP está sendo ocupada por coronéis do IME.

Trocando em miúdos: estamos diante do desmonte do sistema nacional de ciência e tecnologia.

O sucessor do colombiano – macaco em cristaleira – já disse a que veio. Para ele as universidades do Nordeste (detesta a escola pública) não deveriam oferecer cursos de filosofia, sociologia e coisas assim, comunizantes, mas se dedicar ao ensino de agronomia, em convênio com Israel.

Mas o desastre é mais amplo ainda.

O capitão age como detergente em nossa dignidade.

Diz-se que copia Trump, seu ícone. Mas há diferenças. O presidente dos EUA é, com todos os seus rompantes e seu risível topete, como em sua bem organizada paranoia, um nacionalista de fato, adepto do protecionismo em termos de mercado internacional, e, de uma forma ou de outra, está preservando a economia de seu país e gerando emprego. Nada a ver com o que ocorre no lado de baixo do Equador.

O capitão, versão contemporânea da mais abjeta vira-latice, não cessa de tomar decisões que ora prejudicam nossos produtos, ora são obras de pura lesa-pátria, como a destruição da Petrobras, o programa de privatização selvagem e ao sabor da bacia das almas, e a entrega da base de lançamentos de foguetes de Alcântara, de decisiva e insuperável importância estratégica para nossa segurança e nossos interesses comerciais. Entregou-a aos EUA para quê? Por quê? A que preço? Não se sabe. Sabe-se, porém, que esta vilania foi a pá de cal no programa espacial brasileiro, de mais de 50 anos. Sabe-se mais, que a política externa que desacata nossa história e relega a plano secundário nossos interesses, e a entrega de nossa economia, assim a olhos vistos, se fazem acobertadas pelo silêncio comprometedor das forças armadas brasileiras que, no passado, teceram uma louvável saga de defesa dos interesses nacionais, de que um só exemplo foi a consolidação do monopólio estatal do petróleo, obra histórica – fundamental para o desenvolvimento e segurança do país – que teve no general Horta Barbosa seu mais destacado condutor, e no Clube Militar, nele com destaque a atuação do também general Estilac Leal, um centro de debates.

As forças armadas de hoje, à mingua de lideranças à altura do desafio histórico que se coloca para os destinos do país, são corresponsáveis por uma política econômica que em nome de um mercado licencioso restringe os direitos sociais e consagra o Estado repressivo, nega a história e professa o anacronismo social, moral, jurídico, religioso. Ao fim e ao cabo, nossas forças armadas são o sujeito e o sustentáculo de uma política externa que prima pelo entreguismo, palavrão que volta à tona com o governo que sua aliança com o mercado levou ao Planalto.

Perorando sobre o óbvio, o general vice-presidente, em nova e doce vilegiatura, desta feita em palestra em Washington (sempre lá), reconheceu, para estudantes brasileiros, que, se o governo fracassar, a “conta” irá para as forças armadas.

O governo já fracassou e as forças armadas responderão pelo seu fracasso. E a História não esperará por muito tempo.

Para onde caminhamos? Doze soldados do Exército disparam 80 tiros de fuzil contra um carro onde se encontravam o músico Evaldo Rosa dos Santos, seu sogro, sua mulher, uma amiga, e uma criança. Mataram o motorista, feriram o carona e, gravemente, um popular que tentou socorrer as vítimas. O governador do Rio de Janeiro autoriza às tropas da PM o fuzilamento de ‘suspeitos’, e o capitão-presidente defende a posse e o uso indiscriminados de armas de fogo.

E a pergunta que não pode calar: afinal, quem mandou matar Marielle?

Roberto Amaral

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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia