Sobre violação de sigilo e democracia

O Estado pode, quando indispensável ao exercício de suas responsabilidades, ter acesso a informações que revelem a intimidade do cidadão ou da empresa. Essa excepcionalidade se exerce nos estritos limites da lei, sempre tendo em conta que a intimidade é um bem jurídico tutelado pela Constituição e que a esse poder corresponde a obrigação de guardar sigilo das informações obtidas.

Nesse contexto, causam perplexidade os seguidos vazamentos, no âmbito da Receita Federal, de informações protegidas por sigilo fiscal, em desfavor da reputação do órgão, conquistada arduamente com competência e trabalho.

De fato, nos últimos doze meses, foram veiculadas informações sigilosas relativas à Ford, ao Banco Santander, à Petrobras, à BMF&BOVESPA (com repercussões no movimento diário dessa instituição) e às empresas de Guilherme Leal, candidato à Vice-Presidência da República na chapa da Senadora Marina Silva. Por último, constatou-se que vazaram informações fiscais de Eduardo Jorge, dirigente do PSDB, com o objetivo de alimentar um suposto dossiê a ser utilizado, de forma criminosa, como arma na próxima campanha presidencial.

A apuração desses vazamentos, lamentavelmente, está encoberta por mistificações e mal-entendidos conceituais, além de aparentes manobras diversionistas e exercícios de contra-informação.

A competência do servidor fiscal para acessar informações sigilosas é definida pela natureza do cargo por ele exercido e dela resultam senhas e perfis de acesso individuais.

Os acessos são registrados em uma fita específica, em que se identificam o CPF do servidor, bem como o local e a data em que foram realizados. Por essa razão, constitui operação simples, ainda que relativamente morosa, proceder ao levantamento de acessos a um determinado CPF ou CNPJ.

Para ter acesso, entretanto, não basta ter competência funcional, é indispensável também que haja motivação. Em outras palavras, o funcionário fiscal deve ter uma justificativa plausível, associada à sua atividade profissional, para buscar informações protegidas por sigilo. Se o faz de forma imotivada, está sujeito a penalidades administrativas, que vão da advertência à suspensão.

O repasse dessas informações para terceiros, obtidas com ou sem motivação, configura crime de violação de sigilo, capitulado no art. 325 do Código Penal, cuja pena, a depender das circunstâncias, é de seis meses de detenção a seis anos de reclusão. Há, portanto, uma distinção conceitual entre motivação para acessar e violação de sigilo.

Como o levantamento dos acessos ao CPF de Eduardo Jorge já foi concluído, a Receita instituiu comissão para apurar as respectivas motivações. Estranhamente, contudo, na lista de pessoas que tiveram acesso, divulgou-se o nome de uma servidora, ferindo claramente a exigência legal de sigilo no procedimento administrativo disciplinar. Presumiu-se que seu ato foi imotivado tão somente porque, até o momento, ela não ofereceu justificação para o acesso. Mais grave, insinuou-se que a presumida falta de motivação a tornava suspeita do vazamento. É ilação falsa entender que um ato imotivado resulta inevitavelmente em violação de sigilo. Esse crime pode estar associado a um ato motivado ou não.

A investigação deve ser firme, imparcial e competente, sem descurar, entretanto, a observância dos princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal, sob pena de o processo converter-se em pena, como bem lembrou o Professor Joaquim Arruda Falcão. De mais a mais, a simples possibilidade de que venha a ser cometida uma injustiça, na suposição aventada quanto à quebra de sigilo, é uma temeridade que pode tornar-se leviandade.

Da mesma forma que a Corregedoria da Receita está apta para apurar a motivação dos acessos, parece claro que a investigação do vazamento, por sua natureza criminal, guarda mais afinidade com a missão da Polícia Federal. Essa divisão de trabalhos, não dispensa, contudo, cooperação interinstitucional, pautada pelo interesse público.

A reputação da Receita não deve ser confundida com a ação deletéria de pessoas movidas por ânimo político ou pessoal. É indispensável, portanto, que os fatos sejam apurados com rigor e os infratores sejam punidos. Os mecanismos de controle no acesso a informações sigilosas devem permitir apurações mais ágeis e precisas, com registro da motivação. A propósito, como noticiado, um funcionário da Receita, em um curto período, acessou dados de aproximadamente 13 mil pessoas físicas e jurídicas. Feita a sindicância, chegou-se à impressionante conclusão de que todos os atos foram motivados, o que constitui um escárnio merecedor de catalogação no Guiness Book of Records, como a maior bisbilhotice fiscal da história.

De tudo, resta uma grave reflexão: o uso indevido do sigilo tutelado pelo Estado é um caminho por onde passam todas as formas autoritárias de governo. Isso não pode passar despercebido pelos que têm compromisso com o Estado Democrático de Direito, independentemente de suas opções políticas ou partidárias.

Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal