O grito da Noruega

Marina Silva

Por Marina Silva

Visitei três vezes a Noruega.

Em duas fui a trabalho, como ministra do Meio Ambiente, e, na última, tive a honra de receber o Prêmio Sofia. Já da primeira, impressionei-me com a ausência de ostentação, que pude ver em três dimensões: nas ruas, com a simplicidade das pessoas; nas esferas de poder, como no austero gabinete do amigo Erik Solheim – que acabara de ser nomeado ministro- e, principalmente, na arte, em uma visita ao Museu Nacional, onde vi a obra “O Grito”, de Edvard Munch.

Tão dura expressão do horror humano ante a fúria da natureza despertou-me um sentimento ambíguo de plenitude, no qual se combinavam medo e gratidão. Sensibilizada, expressei-me em versos: “Mesmo sem voz é profética, mesmo sem rima é poética, mesmo sem forma é estética, mesmo em segredo revela-se”.

Para mim, a arte permite conhecer algo mais elevado e profundo da condição humana -e agradeço a Deus por essas mensagens. Até o medo faz parte dessa plenitude.

O pavor que grita no quadro de Munch é o de um tempo em que não agredíamos tanto a natureza e, embora nos sentíssemos vulneráveis, talvez não o fôssemos tanto quanto hoje.

O pavor que sentimos em relação à natureza talvez seja o que ela sente em relação a nós. Sou grata pelo aprendizado.

Magnífica a arte, de incessantes profecias, até quando ignoraremos o que seu olhar antecipa? Os noruegueses gritam pelo massacre ocorrido na semana passada. Todos gritamos, solidários na dor.

Como em Munch, o pavor de hoje foi antecipado em seu significado essencial: talvez horror ainda maior do que a natureza nos causa quando nos enfrenta possa advir do cavalo de Troia oculto em nós mesmos. O que tememos é algo terrível que subsiste na natureza humana, uma sabotagem contra a diversidade da cultura e da vida, que é a mais preciosa condição de sua continuidade sobre a Terra.

Sublime é o medo quando se torna um temor respeitoso de que esse laço, de pertencimento à natureza e unidade entre os seres humanos, possa se romper de vez.

O povo norueguês, que carrega sua simplicidade nesse tempo de delírio consumista, que apoia programas internacionais, inclusive no Brasil, na defesa do ambiente e da biodiversidade, encontrará os meios de ressignificar o irreversível. Temos ainda de buscar força diante das dores e dos massacres que vivemos.

Talvez encontremos esperança nas palavras Hannah Arendt, para quem os homens “embora devam morrer, não nasceram para morrer, mas para recomeçar”. Mergulhando em nossa dor, acharemos o ponto onde ela se origina: ao nos separarmos da natureza a ponto de nos opormos a ela, separamo-nos e opomo-nos a nós mesmos. Precisamos, portanto, recomeçar.