NIEMEYER NO SONHO DE DARCY

Por Ribamar Bessa:
As imagens do enterro de Oscar Niemeyer (1907-2012), nesta sexta feira, me fizeram lembrar um sonho erótico, quase pornográfico, que teve Darcy Ribeiro com o arquiteto. Ele sonhou que o governo brasileiro nomeava a ambos para missão de alto nível na África: selecionar mulheres que queriam migrar para o Brasil. Milhões de belas candidatas negras faziam filas intermináveis que se estendiam por todo o litoral africano, de onde olhavam o Brasil. Como escolhê-las? Os dois examinadores inventaram, um teste que era pimba na gorduchinha: o “teste do cheiro”.
Mas antes de contar como foi aplicado o tal teste, convém contextualizar o sonho. Darcy passara por Manaus, em 1978, para ministrar um curso organizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Avisei seu amigo, o poeta Thiago de Mello, que me perguntou
– Onde ele está hospedado?
– Acho que na Casa Jordão.
Era lá, nessa casa de retiro dos Salesianos, no bairro do Aleixo, que acontecia o curso e era lá que estavam alojados todos os participantes. Thiago quis saber se, entre eles, havia mulheres. Diante da resposta negativa, afirmou categoricamente:
– Então Darcy não fica lá. Ele jamais dorme em recinto onde só tem homem. Jamais! Tem que ter mulher debaixo do mesmo teto. Pode ser apenas uma, jovem ou velha, bonita ou feia, pode até ser freira e se alojar em quarto separado, mas sem sentir cheiro de mulher, no ar, ele não dorme. Não dorme!
A Casa Jordão, com odor de santidade, estava ocupada exclusivamente por homens. Por isso, de lá se pirulitou Darcy, pecador confesso. Consegui localizá-lo bem longe dali, no Hotel Flamboyant, na Av. Eduardo Ribeiro, onde, enfim, se hospedara. Com Thiago, fomos lá convidá-lo para um show que o poeta dava no Teatro Amazonas em parceria com o cantor Sérgio Ricardo. Foi quando Darcy nos contou que estava esgotado, pois passara a noite toda labutando em árdua missão na África.
Cheio de mundo
Foi na África que pensei quando vi na tv imagens dos dois velórios: o de Brasília, na quinta-feira, e o do Rio, na sexta, porque em ambos havia filas com milhares de pessoas, autoridades, funcionários, estudantes e gente humilde do povo. Cadetes carregavam pela rampa do Palácio do Planalto “un cadáver lleno de mundo“, como no poema de Vallejo. Os jornais entrevistam um pedreiro, uma doméstica, uma cobradora de ônibus, um eletricista, vindos de longe, endomingados, enfatiotados, que acenavam com lenços, alguns chorando na despedida ao construtor de Brasília.
No velório do Palácio da Cidade, no Rio, dois padres, um rabino e um pastor luterano oficiaram cerimônia ecumênica rezando pelo arquiteto que, embora ateu convicto, havia projetado igreja e mesquita, com admiração e respeito por aqueles que têm fé e professam algum tipo de religião. “Niemeyer ajudou a entender o significado da passagem bíblica que diz: a fé remove montanhas” – falou o pastor Mozart Noronha
É que Niemeyer acreditava, como comunista suprapolítico, na igualdade, na justiça e na solidariedade entre os homens. Lutou a vida toda por isso. E se o teólogo Leonardo Boff tiver razão, se Deus significa “entusiasmo” na derivação da palavra grega, então Niemeyer foi um ateu ébrio de Deus. No velório, até comunistas rezaram. A mulher de Luis Carlos Prestes estava lá, com uma bandeira vermelha, cantado o hino da Internacional Socialista.
– Niemeyer foi inabalavelmente comunista por mais de seis décadas – escreveu Jacob Gorender.
Na entrevista dada a um jornal, Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa, conta que quando tinha três anos de idade, Niemeyer costumava brincar com ela toda vez que a encontrava dizendo: “Você é comunis…” E ela completava: “Tá”.
– Eu muito me envergonharia se fosse um homem rico – declarou Niemeyer, que poderia ter acumulado bastante grana se a isso se dedicasse. Viveu sempre honestamente do seu trabalho. Deu-se o prazer de fazer vários projetos sem nada cobrar, como a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, na Vila da Penha, mantida pelo pedreiro Evando dos Santos ou a passarela projetada na comunidade da Rocinha, entre tantos outros. Chegou a doar um apartamento a Prestes. Depois do golpe militar de 64 foi interrogado num Inquérito Policial Militar (IPM) por um general, que queria saber como havia constituído seu razoável patrimônio.
– Dando o fiofó, general – teria respondido, irreverente, o arquiteto, que já era internacionalmente conhecido e requisitado no mundo todo por clientes públicos e privados. Uma resposta à altura da pergunta.
Poeta da Curva
Jornais internacionais deram amplo destaque à morte de Niemeyer. Desde o Granma, de Cuba, que exaltou sua “paixão pelos humildes”, até o New York Times, que dedicou uma página inteira ao “poeta da curva”,  responsável pela identidade do Brasil moderno, passando pelo Le Monde que o chamou de “arquiteto da sensualidade”. Mas Niemeyer não estava nem aí, como havia já afirmado em entrevista:
– O sujeito que pensa que é importante, para mim, é um débil mental. O homem está num planeta pequenininho, no fim da galáxia, longe de tudo. Isso dá uma ideia da precariedade do ser humano, que é um fodido. Nasce, morre, como outro bicho qualquer, por isso mesmo deve ser mais modesto, ver a vida com paciência, sabendo que estamos no mesmo barco.
Resposta semelhante deu quando completou cem anos e um jornalista pediu que comentasse frase de Darcy Ribeiro para quem no ano 3.000 Caxias, Marechal Deodoro, Pelé, Gonçalves Dias – toda essa gente estaria esquecida e que o único brasileiro lembrado seria ele, Niemeyer.
– Quem garante que no ano 3.000 ainda existirá Brasil e brasileiros? Quem nos assegura que a espécie humana ainda existirá?
No Cemitério São João Batista, a Banda de Ipanema atacou “Cidade Maravilhosa” e “Carinhoso”, de Pixinguinha, que – eu pensei – cairiam muito bem se tivesse tocado também na hora do “teste do cheiro”, cuja aplicação prescindiu, infelizmente, de fundo musical. É que Darcy esquecera de convidar para o seu sonho os integrantes da Banda, que no enterro vestiam camisetas, onde estavam impressos desenhos com os traços inconfundíveis de Niemeyer e uma frase dele:
– De curvas é feito todo o universo.
Essas curvas que o mundo inteiro admirou. No bairro de Aparecida, em Manaus, nos anos 1960, atuava um “arquiteto descalço”, autodidata, sem diploma, que sequer havia concluído o curso primário no Grupo Escolar Cônego Azevedo. Talentoso, grande desenhista, Edilson, filho da dona Pequenina, mais conhecido como Gaguinho, era contratado para desenhar e projetar as reformas das casas do bairro e adjacências. Foi aí que se apropriou das colunas do Alvorada, presentes em quase tudo que fazia. Era o Niemeyer chegando nos mais longínquos rincões da pátria.
Uma das melhores sínteses do conjunto da obra de Oscar Niemeyer foi feita pelo jornalista Leonel Kaz, que trabalhou com Darcy Ribeiro:
– A arquitetura é o lugar para deixar a nuvem entrar, como no prédio do Ministério da Educação, é o lugar para o mar mergulhar na gente como das janelas do Museu de Arte Contemporânea de Niterói. A beleza dos traços do arquiteto era leve porque não eram os traços do homem, mas das curvas sinuosas de pedra, ondas do mar, pássaros e lagartos. Ele se apropriou, como homem, do que não era humano exatamente para nos tornar mais humanos.
Teste do cheiro
O próprio Niemeyer, em declarações anteriores em que defendia as curvas, oferecera motivos para que ficasse conhecido entre os franceses como “o arquiteto da sensualidade”:
– Não é a linha reta que me atrai, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual que encontro nas montanhas, no curso sinuoso dos rios, nas nuvens, no corpo da mulher bonita.
Mulheres bonitas, deslumbrantes, sensuais, cheias de curvas, calipígias, bundas empinadas, peitos ondulados era o que não faltava no sonho que Darcy nos havia contado, no qual Niemeyer foi protagonista. Elas queriam entrar no Brasil, mas tinham de passar por um grande portão na frente do qual estavam os dois construtores do Sambódromo. Eles eram as sentinelas que detinham a chave para abri-lo.
Duas filas gigantescas de mulheres africanas, totalmente nuas, esperavam para entrar, mas só podiam fazê-lo se aprovadas no “teste do cheiro”. As filas avançavam lentamente, primeiro eram examinadas por Darcy e, depois por Niemeyer, que passavam suavemente a mão no sexo de cada uma delas, alisavam, faziam carinho e, em seguida, cheiravam a própria mão, quando então avaliavam:
– Essa pode passar! A seguinte.
Foram milhões de mulheres. Darcy, com seu riso moleque, disse que nenhuma delas foi reprovada. Todas entraram no Brasil. É por isso que o nosso país é tão rico e diversificado. O sonho havia sido tão real que ele, mostrando as mãos ao Thiago, jurava que estavam ainda impregnadas daquele perfume  afrodisíaco coletado in loco.
– O que conta não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar – dizia Oscar Niemeyer, já fora do sonho do Darcy, injetando esperanças na arquitetura deste Brasil que ele, mais do que ninguém, ajudou a construir, o que acirrou em todos nós o orgulho da brasilidade. O Brasil já é bonito por natureza. Niemeyer criou beleza nos espaços onde a mão do homem se intrometeu. Merece descansar em paz!