Por Ribamar Bessa:
(Enviado de Bogotá) Sempre me lembro de uma velha amiga colombiana, nascida em Antióquia, a quem eu não vejo há algum tempo. Por isso, me animou a esperança de revê-la quando fui convidado pela Fundación Para el Fomento de La Lectura (Fundalectura) para participar de uma mesa-redonda num Congresso Internacional agora, no final de abril, em Bogotá, durante a Feira Internacional do Livro.
Antiga paixão sempre desperta tentação. Amor de amiga onde bate fisga, já diz o ditado. Depois de tanto tempo, agora de cabelos brancos, sem o ímpeto juvenil de outrora, eu morria de curiosidade de saber se o tempo havia sido cruel também com ela. Tinha a esperança de reencontrá-la inteirinha, tal qual havia permanecido na minha memória, onde o tempo havia parado. Como seria essa redescoberta?
No voo da Avianca que saiu do Rio, ia pensando nela. Na minha lembrança se sucediam as imagens de quando nos conhecemos há muitos anos. Aconteceu de repente, por acaso, no restaurante Entre pues em Chia, nos arredores de Bogotá, durante a minha primeira visita a Colômbia. Fui apresentado a ela por uma amiga comum, pesquisadora do Instituto Caro y Cuervo.
Amores que se foram
Foi amor à primeira vista. Estou vendo-a como se fosse hoje. Nesse dia, ela estava particularmente sedutora e – as feministas que me perdoem – apetitosa, bem arrumada, vistosa, toda faceira, um piteuzinho. Trocamos olhares. Para complicar ainda mais, o som do restaurante atacou Espumas, um pasillo cantado por Garzón y Collazos:
– Amores que se fueron, amores peregrinos, amores que se fueron dejando en tu alma negros torbellinos.
Soube naquele momento que algo de irreversível estava por acontecer. Tive a nítida sensação de que meu olhar pidão era correspondido e que nascia ali uma paixão ardente, fulminante. Ai, meu Deus, por que me deste alma tão vulnerável, tão viciada em telenovela? Parece que a colombiana estava me esperando desde sempre como a Morena esperava o Theo.
Mas o galã, o idiota do capitão Theo, quando viajou a Turquia, traiu Morena seduzido que foi por Lívia Marina. Essas viagens que quebram a rotina da gente acabam estimulando as puladas de cerca com a descoberta de novas relações. Não sou hipócrita, nem vou fazer suspense. Vamos direto ao que interessa. O que aconteceu foi muito forte, deixou minha alma marcada, meu corpo tatuado.
Não é fácil. Creio, porém, que o tipo de formação judaico-cristã que tive na infância é que me deu coragem para fazer confissão pública tão constrangedora: sim, eu traí e fui infiel, especialmente, atropelando uma relação tão sólida iniciada no Peru em 1970. Sim, prevariquei também enganando compromissos afetivos herdados em Manaus. Mea culpa, mea maxima culpa.
O mais grave, no entanto, não é o que pode ter acontecido no passado e sim o que rolou agora, em 2013, uma espécie de reconstituição – digamos assim – do crime. Quando cheguei a Bogotá, não a vi no aeroporto, mas no dia seguinte não resisti. Procurei-a. Escolhi para o nosso reencontro o mesmo cenário de quando a conheci: o restaurante Entre pues em Chia. Pedi ao gerente para tocar Espumas.
– Igual que a las espumas / que lleva el ancho rio, / se van tus ilusiones / siendo destrozadas por el remolino./ Espumas que se van / bellas rosas viajeras…
Por ironia, a música que seguiu foi um bambuco, cantado pelos mesmos Garzón y Collazos que suspiravam: “Yo también tuve 20 anos”. Então me levantei e, com toda reverencia, extasiado, pude contemplar minha Dulcinea. Fiquei em pé observando-a. Depois de tanto tempo, ela não mudou muito, pelo menos na aparência. Constatei que alguma pele mole caía aqui e ali, mas a fartura da carne ainda impressionava, da mesma forma que o aroma que exalava, os adornos que a enfeitavam. Sua aparência exuberante contribuiu para que eu prevaricasse outra vez. Quando vejam a foto, vocês me perdoarão.
Bandeja paisa
Quem é, afinal, essa colombiana, campesina santanderiana, sabor de fruta madura, tão sedutora, capaz de mexer ainda com um velho, que já não é mais assim tão libidinoso? Talvez a resposta possa ser encontrada na poesia de Pablo Neruda, em sua autobiografia Confesso que vivi, ou em um poema em que ele dá a receita do caldillo de congrio, ou quando menciona o prato único:
“A palavra pão se come; a palavra copo, se enche; a palavra nave navega”.
Aproveitando essa licença poética, posso agora revelar quem é a colombiana capaz de derrubar qualquer virtude ou qualquer fortaleza. Ela responde pelo nome de Bandeja Paisa. É um prato típico da culinária de Antióquia, um departamento ao noroeste do país, que o governo colombiano tentou converter em prato nacional com o nome mudado para bandeja montañera. O nome deriva do fato de que é tanta comida que não cabe num único prato, só numa bandeja.
Na verdade, são 14 diferentes pratos num só, e em alguns lugares acrescentam ainda mais sete tipos de carne. Tem arroz, feijão, torresmo, chouriço, carne moída, tomate, abacate, hogao – uma espécie de refogado com cebola, pimenta, orégano, açafrão, além de arepas – massa de milho moído assada em folha de bananeira e patacón – banana pacovã verde, cortada em rodelas fritas e depois amassadas e refritas, polvilhadas com queijo ralado. Tem até ovo frito. Razão tem o humorista Stanislaw Ponte Preta quando diz:
– Qualquer prato no mundo melhora se for enfeitado por cima com um ovo frito.
A bandeja paisa é uma delícia épica, uma bomba do bem, mas uma bomba. Não é qualquer um que pode enfrentá-la, é preciso estar preparado psicológica e gastricamente para o combate amoroso, porque ela derruba e aniquila os fracos, mas se você é aguerrido e valente, sai fortalecido do embate seguindo a receita cantada por Gonçalves Dias na Canção dos Tamoios:
– “Se o duro combate, os fracos abate, aos fortes, aos bravos, só pode exaltar” .
O cardápio do restaurante oferecia variedade de pratos colombianos, peruanos e até algo da Amazônia colombiana. No entanto, enfeitiçado pela bandeja paisa, traí – confesso que traí – o ceviche, o aji de gallina, o pirarucu, o tambaqui na brasa, o pacu e o jaraqui. Comi, com alegria e entusiasmo, esse prato intraduzível para outras línguas. Günter Schlamp, conferencista que participou do Congresso, tentou traduzir bandeja paisa para o alemão. Inutilmente. Nem tudo o que é comível e saboreado pelo paladar e pela língua pode ser traduzível para outra língua.
Os franceses que me perdoem, mas o cassoulet deles não chega nem aos pés da bandeja paisa, cujo equivalente, no Brasil, seria a nossa feijoada, a tal ponto que se aplica aquilo que Stanislaw Ponte Preta disse do nosso prato nacional:
– Bandeja paisa completa só com ambulância na porta.
Confesso que traí e aviso que vou trair de novo, quando for a Manaus. Marquei um próximo encontro com a bandeja paisa no restaurante colombiano La Finca, que fica no bairro Dom Pedro I, atrás da cavalaria do Rocam. Ele é citado numa tese de doutorado, em preparação, a ser defendida na Universidade Federal Fluminense por Lúcia Puga, que coletou ricos dados sobre a migração colombiana no Amazonas. Arrematarei com um panela molida ou um dulce macho.
Bandeja paisa ao som de Garzon y Collazos é inesquecível. Funciona como um bajativo. Aos donos do La Finca, o casal colombiano Jorge e Monica Molina, já estou encomendando desde já que caprichem no som:
– Ya nunca volveran / las espumas viajeras / como las ilusiones que te depararon dichas pasajeras.