“Advocacia se proletarizou e não é mais o celeiro das elites políticas”

Fonte: CONJUR

No livro A Política como Vocação, o sociólogo alemão Max Weber afirma que a advocacia é uma profissão intimamente ligada à política. Quem tem talento para um normalmente tem para outro, e por isso tanto membros das elites intelectuais e políticas são advogados.

Só que o livro é a reprodução de uma conferência feita pelo sociólogo em 1919 e se referia a outra realidade. Naquele tempo, o Brasil era a República Velha e se consolidava como “república dos bacharéis”. Cem anos depois, o cenário mudou um pouco: a advocacia tornou-se uma profissão de classe média baixa, cujos integrantes estão mais preocupados em entrar no mercado de trabalho do que em estudar e contribuir com a vida pública do país.

É o que afirma o sociólogo e cientista político brasileiro Bolívar Lamounier no livro eletrônico O Império da Lei, publicado em 2016. Nele, Bolívar fez um levantamento estatístico sobre quem são e como pensam os advogados brasileiros. Num universo de quase um milhão de profissionais, entrevistou 1.050 deles para chegar a um levantamento qualitativo.

Descobriu, por exemplo, que, ao contrário do que dita a imagem que o senso comum tem da advocacia, a imensa maioria dos profissionais ganha até R$ 12 mil por mês e não continua estudando depois que consegue a carteira da OAB. Ficou claro também, segundo Bolívar, que os advogados não se sentem nem representam uma categoria coesa. “É mais um caleidoscópio de opiniões”, diz o pesquisador.

O quadro é típico, segundo ele, da classe social a que a maioria dos advogados pertence. Mas isso não deixa de surpreendê-lo. “Como grupo, os advogados não meditam muito sobre esses temas institucionais, sobre as premissas filosóficas da carreira. Acho até que eles não leram muito e a grande maioria dos cursos de Direito parece não ter boa qualidade. O nível de leitura é muito prático, voltado aos códigos e à letra da lei”, analisa Bolívar. “É um processo de proletarização”, afirma, em entrevista à ConJur.

A obra contém dados alarmantes, como o fato de 90,6% dos advogados considerarem figuras claramente ligadas ao punitivismo, como o Ministério Púbilco Federal, a Polícia Federal e o juiz Sergio Moro, ótimas ou boas. “É a não percepção de que há uma tensão entre dois valores, entre o combate à corrupção e o direito de defesa”, diz Bolívar. “É que o peixe não vê a água”, conclui o livro, sobre a falta de conexão entre grande parte dos advogados e ideias e valores democráticos antes ligados à advocacia.

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Leia a entrevista:

ConJur — Qual a conclusão do livro? O que mais chama atenção é a constatação de que a advocacia não é mais uma profissão elitizada e passou por um processo de proletarização. É isso?
Bolívar Lamounier —
O que eu tinha na cabeça era que, historicamente, os advogados sempre foram a elite política do país, sempre muito fortemente representados nos parlamentos, nos ministérios, com muita autoridade na opinião pública. Até mesmo na área financeira, com o Santiago Dantas, conhecido como grande financista, mas que foi um advogado importante nos anos 1930. Mas no Brasil, de uns tempos para cá, me parecia que essa figura estava em extinção. Com exceção de alguns poucos nomes, os advogados não são mais uma elite. Muita gente que 50 anos atrás estudaria Direito passou a estudar Economia, Administração. Houve uma mudança na estrutura das profissões.

ConJur — Por que a desconfiança?
Bolívar Lamounier —
Porque houve um momento em que houve um grande desestímulo. As pessoas se candidataram a cargos públicos por causa do regime militar, concomitantemente abriam oportunidades muito boas para jovens irem para os Estados Unidos, para a Inglaterra, estudar Economia e outras profissões novas. E a pesquisa demonstra isso de forma muito clara: a estrutura da profissão mudou.

ConJur — Em que sentido?
Bolívar Lamounier —
Parece que há quase uma estrutura de castas, com os grandes escritórios e alguns que ganham fortunas por mês no topo, e na base uma verdadeira multidão de advogados com rendimentos mensais muito baixos, de até R$ 12 mil — nem sei se eles conseguem pagar o que gastam para estudar, porque as faculdades são caras. Essa é a pirâmide, meio esquisita, com o topo solto flutuando no ar e uma base muito grande. Era plausível, então, achar que nesse grupo havia pensamentos estruturados, opiniões bem alicerçadas sobre as grandes questões do Direito.

ConJur — E há?
Bolívar Lamounier —
Tive a impressão de que não. A pesquisa mostrou que, para essa base, a formação de opinião é bastante precária. As pessoas fazem seu trabalho diário de advocacia nos diversos ramos, mas não há muita continuidade nos estudos. Depois do bacharelado, o indivíduo faz o Exame de Ordem e vai advogar. E aí acaba.

ConJur — Mas foi possível identificar algum tipo de estratificação de opiniões dentro dessas “castas”?
Bolívar Lamounier —
As grandes distinções de opinião que encontrei foram que os professores universitários, por causa do ambiente acadêmico, são um pouco mais para a esquerda, um pouco mais “progressistas”. Já o médio seria mais conservador — num sentido bem frouxo da palavra “conservador”, porque as opiniões são muito difusas. Interessante é que, curiosamente, nos grandes escritórios também pude observar um pouco mais de progressismo que na média, provavelmente porque os que estão no ápice da pirâmide têm formação universitária mais forte, às vezes até no exterior. No mais, é muito mais um caleidoscópio de opiniões do que opiniões organizadas em torno de eixos principais de direita e esquerda, ou qualquer coisa parecida.

ConJur — Outro dado interessante é o grande apoio, de mais de 30% da classe, a ideias como democracia direta, plebiscito e outras formas de participação que não condizem muito com a premissa da pesquisa, de que a advocacia é a profissão mais ligada à política.
Bolívar Lamounier —
Mas é porque não há muita coesão nem coerência entre as opiniões. Como grupo, os advogados não meditam muito sobre esses temas institucionais, sobre as premissas filosóficas da carreira. Acho até que eles não leram muito e a grande maioria dos cursos de Direito parecer não ter boa qualidade. O nível de leitura é muito prático, voltado aos códigos e à letra da lei. Esse é o processo de proletarização, e para isso contribuiu também o crescimento aceleradíssimo da profissão.

ConJur — Também houve baixa rejeição a ideias bastante autoritárias, como pena de morte, porte de arma, prisão perpétua.
Bolívar Lamounier —
Sim, muito baixa. Ou seja, nesse tipo de questão, a opinião do advogado é muito parecida com a opinião do extrato social a que eles pertencem, que é uma classe média baixa. Imagino que você veria os mesmos resultados se fizesse uma pesquisa com não advogados nesse mesmo estrato social, o que significa que o estudo de Direito não mudou muito a cabeça deles.

ConJur — Uma conclusão espantosa é que mais de 90% dos entrevistados dessa segunda fase marcaram Sergio Moro, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal como “ótimo ou bom”. Mostra uma queda pelo punitivismo também na advocacia.
Bolívar Lamounier —
É a não percepção de que há uma tensão entre dois valores, entre o combate à corrupção e o direito de defesa e os direitos individuais. Teria ficado mais feliz se tivesse encontrado uma divisão mais ao meio, seria uma resposta mais intuitiva em se tratando de advogados. Mas não é o que acontece. Eles vão maciçamente para um lado, não há muita reflexão sobre o valor da defesa, preocupações com os excessos das investigações, aquela coisa de mero indiciamento virar denúncia, delação virar condenação.

ConJur — Então é bem aquela ideia do Nelson Rodrigues, de que o brasileiro não é de esquerda nem de direita, é de classe média, preocupado com o aluguel e com as contas a pagar. Pelo que o senhor explica, o advogado não se sente mais parte de uma classe especial, diferenciada, mas apenas como integrante do meio social em que vive. É isso?
Bolívar Lamounier —
Ele pensa como a classe sem saber que pensa. Ele não se sente parte de um grupo, portador de um status mais elevado que devesse ter uma opinião mais aprimorada sobre esses temas. De jeito nenhum. Ele se parece muito com a base social a que pertence.

ConJur — Um pouco paradoxal isso no país dos bacharéis.
Bolívar Lamounier —
Muito paradoxal. Mas isso se explica pela mudança na estrutura da profissão e pela rapidez do crescimento do número de profissionais. A sociedade precisaria hoje de muito menos advogados mais bem qualificados. Esse milhão de advogados com baixa qualificação não é uma boa solução para a prestação de Justiça no Brasil.

ConJur — Mas pelo que conclui a pesquisa, várias profissões passaram por essa proletarização, com achatamento de salários e baixo interesse por pesquisa. Algum motivo especial para a advocacia sofrer tanto com isso?
Bolívar Lamounier —
A engenharia também se proletarizou. Profissões novas, como Economia, Antropologia e Administração de Empresas, passaram a recrutar uma juventude mais motivada e mais talentosa. Mas há uma diferença muito grande: para abrir uma Faculdade de Direito, o empreendedor precisa apenas de um prédio. Não precisa de equipamento, laboratório, nada. Pode contratar professores, uma biblioteca com as obras básicas de referência e pronto. Por isso o Brasil tem hoje 1,2 mil faculdades de Direito, segundo um levantamento da Folha. Fiquei até espantado quando vi o valor da matrícula, os cursos são caros mesmo em estados pequenos. Com Engenharia e Medicina é mais complicado abrir uma faculdade, o investimento é muito mais alto. Por isso a proletarização da advocacia é palpável.

ConJur — O livro faz uma pergunta e gostaria de saber a sua resposta. O senhor põe ali aquela ideia do Max Weber em A Política como Vocação, de que a advocacia é um viveiro de lideranças políticas, e deixa a pergunta, que devolvo: as profissões políticas podem voltar a ser o viveiro das vocações políticas?
Bolívar Lamounier —
Coloquei uma esperança ali, mas sou cético quanto a isso devido às tendências muito poderosas que já discutimos. É muito improvável que isso aconteça, mas seria bom que o ensino jurídico melhorasse drástica e rapidamente, porque o país precisa de uma elite mais qualificada. O que havia de “elite”, se for para usar o termo com uma conotação positiva, acabou com a transição do regime militar. Com a morte dos principais líderes da transição, entramos em uma classe política profundamente medíocre, que é uma das causas da crise que o Brasil vive hoje.

ConJur — Outra conclusão interessante do livro é que os advogados concordam com muitas ideias antiliberais embora a classe não chegue a ser antiliberal. Como isso funciona?
Bolívar Lamounier —
Não é um pensamento ideologicamente estruturado. Tem alguns pontos que levam em uma direção, outros pontos que levam em outra direção, mas não há dois polos, um liberal e outro antiliberal, como claramente era no passado, nos anos 1950. De lá para cá, a advocacia não se contaminou por essas discussões. Principalmente porque no regime militar a participação estudantil se diluiu muito, porque todos ficaram de um lado só, o que atenuou a diferença entre direita e esquerda.

ConJur — O livro diz que são mais de 900 mil advogados, embora não dê para saber quantos efetivamente advogam. Pela pesquisa, dá para saber como foi a evolução desse número?
Bolívar Lamounier —
Tentei achar estimativas, mas são todas muito precárias — no mundo inteiro, aliás, com exceção dos Estados Unidos. Parece que lá pelo ano de 1970 não haveria mais que 80 mil ou 100 mil advogados no Brasil, e hoje está perto de um milhão. Um crescimento muito acelerado. Um aspecto auspicioso desse processo é que aumentou o número de mulheres e hoje é até um pouco maior o número de mulheres que o de homens, com 52,53% em comparação com 47,48%. Consegui perceber também certa diferença de remuneração na mesma função entre homens e mulheres, mas isso não é uma singularidade brasileira. O único país que a remuneração na mesma função é igual é na França.

ConJur — Para fazer o livro, o senhor pesquisou diversos modelos de advocacia e analisou o estado da profissão em vários países. Como situa o Brasil?
Bolívar Lamounier —
Há alguns traços parecidos com a parte mais pobre dos Estados Unidos, onde o ensino piorou muito, virou uma indústria, que o sujeito mal consegue pagar de volta as mensalidades, e há um número muito grande de advogados. Isso também é o caso da Índia. Em termos absolutos, porque o lugar que tem mais advogados per capita é Israel. Mas lá são muito bem qualificados e bem treinados, de fato prestam um serviço à população. A França também dá uma impressão muito boa de estruturação — pelo menos lendo, porque não fui lá ver.

Tudo isso digo com base em dados estatísticos, e não de opinião. Mas os dados são precários. Da Espanha não tem nada. Nos Estados Unidos, é impressionante, tem estatísticas por estado desde o século XIX. É impressionante a qualidade da estatística. Na Alemanha não chega a esse ponto, mas é interessante: houve uma adesão muito grande dos advogados ao nazifacismo, mas isso você só vê em estatísticas de votação, em que eles conseguiram desdobrar por profissão e tal.