A DOENÇA DO PODER

Por Ribamar Bessa:

Essa doença eu não pego – pensei cá com os meus anárquicos botões. Ledo Ivo engano – diria o Cony. Ninguém está imune. Ninguém! Nem o Papa! Comprovei na própria pele quando, nesta semana, contraí o vírus conhecido cientificamente como hybris, que tem a capacidade de se multiplicar em poucas horas. Fui salvo, é incrível, não por um médico, mas pelo motorista de um ônibus. Passo a vos relatar minha experiência, com a esperança de assim ajudar eventuais leitores a tomarem as precauções que o caso requer.

Deixem-me, antes, vos apresentar o tal vírus descoberto pelo neurologista inglês, David Owen, formado em medicina pela Universidade de Cambridge, que se inspirou, para denominá-lo, em um personagem da mitologia grega, Hybris, filho de Dyssebia (Impiedade). A doença ficou conhecida como “Síndrome de Hybris” em homenagem a esse filho da mãe que, quando conquistou a glória, ficou ébrio de poder e passou a se comportar como um deus. Não havia nome mais apropriado.
Essa doença ataca, preferencialmente, políticos senis – nos ensina o neurologista, que sabe do que fala, porque além de médico, foi ministro de Relações Exteriores da Inglaterra e fez parte do grupo de risco. Mas tanto os jovens, como os pé-rapados, eventualmente, não estão imunes a ela. Vários casos são apresentados no livro “In Sickness and in Power” (Na Doença e no Poder), escrito pelo doutor Owen, cujo subtítulo é: “Illnesses in Heads of Government during the Last 100 Years (Doenças de chefes de governo nos últimos cem anos).
Não vou mentir pra ti, leitor (a). Ainda não li o livro, mas entrevistei quem o leu: o doutor Google, que sabe tudo. O livro – dizem os que o leram – descreve as diversas fases da doença. Ela começa quando um político qualquer, sadio e normal como tu e eu, concorre à eleição e ganha. Ele tem, quase sempre, dúvidas sobre sua capacidade para exercer o cargo, mas logo é convencido do contrário por uma legião de puxa-sacos, que começam a incensá-lo.
Os bajuladores não podem ver candidato vitorioso, que partem pra cima, esvoaçando como urubus em torno da carniça. Os caras tem um faro devastador. Vejam as primeiras entrevistas concedidas pelos novos prefeitos, que aparecem sempre ladeados por vorazes gengivas em sorrisos untuosos e servis. Esse é o caldo de cultivo para a doença mostrar sua força.
O poder da doença
Essa é a primeira fase. Diante dos aduladores que surgem de tudo que é buraco com uma habilidade única de babar ovo, o paciente vai perdendo, aos poucos, a capacidade de ouvir críticas e opiniões contrárias. Fica convencido de que é um “escolhido”, um predestinado para exercer o poder. É quando a doença salta para outro patamar.
Os sintomas são claros nesta segunda fase. Embriagado pelo poder, a vítima começa a sofrer de “transtorno delirante” e entra num estado agudo de egolatria, própria de um iluminado. Convicto de que ele é o “o” do borogodó, adquire a certeza de que é infalível, insubstituível, e faz planos estratégicos para os próximos vinte anos. Dessa forma, se isola da sociedade e entra num processo psicopatológico chamado de “desenvolvimento paranoide”.
Passa, então, a esbanjar arrogância e prepotência. Manja o ex-governador Eduardo Braga (PMDB, vixe, vixe) antes e durante as recentes eleições municipais? Pois é. Ele acreditou na cambada de puxa-sacos que o cerca e achou que era dono dos votos dos eleitores. Quebrou a cara. A derrota leva a doença a entrar na sua terceira fase: um quadro depressivo, cujas características podem ser definidas pelo meu compadre, o picica-analista Rogélio Casado.
No entanto, contraditoriamente, essa é a única possibilidade que o paciente tem para se curar: a rotatividade no poder, que funciona como uma espécie de vacina, trazendo o dito cujo para o mundo real. A derrota é anunciadora de uma mensagem implícita que diz: “Lembra-te, homem, que és pó e em pós te hás de tornar”. O Dia de Finados está aí mesmo para não nos deixar esquecer.
Owen, o neurologista, analisou com propriedade a interrelação entre a política e a medicina, dois campos que ele conhece muito bem. Mas a “Síndrome de Hybris”, por ele descoberta, é mais uma denominação sociológica do que propriamente médica, embora produza graves consequências para a saúde.
O psiquiatra Manuel Franco assegura que essa “doença do poder”, marcada por megalomania e por paranoia acentuada, é uma desordem da personalidade capaz de produzir transformações físicas, psicológicas, atitudinais e anímicas em suas vítimas que, antes da doença, eram pessoas equilibradas e respeitáveis.
– O poder envenena e intoxica tanto que acaba perturbando o juízo de quem o exercita – diz o psicanalista. O cara fica mesmo lelé da cuca, o que baixa as defesas, abrindo espaço para uma série de outras doenças.
Vários exemplos são mencionados no livro, discutindo o papel político e a saúde de 30 chefes de governos: o ex-presidente americano Theodore Roosevelt, além de depressivo, sofria de asma; Ariel Sharon, o primeiro ministro israelita, além de obeso mórbido, tinha graves problemas cardíacos; Woodrow Wilson sofria de hipertensão e esclerose. A eterna caganeira de Hitler, o alzheimer de Ronald Reagan e o câncer do Xá da Pérsia eram todas doenças alimentadas pela “síndrome de Hybris”.
Nem o papa Bento XVI escapou de contrair a doença do poder, quando em 1977 foi sagrado bispo de Munique e, logo depois, nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Cercado de puxa-sacos, Joseph Ratzinger ficou excessivamente autoconfiante, prepotente e arrogante. Foi nessa época que ele deu um créu no teólogo Leonardo Boff, obrigando-o a ficar calado, porque não suportava ser contrariado.
Mas enquanto os políticos podem ser curados quando derrotados pelo voto, no caso do Papa a doença não tem cura, já que seu cargo é vitalício. Ele está condenado a morrer embriagado de poder, sentindo-se o dono da verdade, o rei da coca-cola, o infalível, o insubstituível.
Filosofia barata
Eis o que eu queria dizer, correndo o risco de produzir filosofia barata. Esse virus que ataca os politicos e o papa pode causar também devastações em qualquer pé-rapado. É o meu caso. Completei 65 anos sem nunca haver dado uma carteirada na minha vida, não por virtude própria, mas por falta de carteira. De repente, a situação mudou e senti, de perto, a sensação de poder que nessa semana me atingiu como uma bala no peito.
É que não aguentando mais dirigir o carro diariamente para atravessar a ponte Rio-Niterói, decidi andar de ônibus. Aderi ao RioCard, um sistema de bilhetagem eletrônica utilizado no Estado do Rio de Janeiro, gerenciado e distribuído pela Federação das Empresas de Transportes de Passageiros (Fetranspor).Ganhei uma carteira.
A troca do carro pelo ônibus, que parecia ser perda de poder, se revelou o contrário. A carteira que a RioCard me forneceu é a de Senior, ou seja, passageiro com mais de 65 anos, que anda de graça. A primeira vez que a usei foi num ônibus da linha 45 Cubango-Centro, em Niterói, e na volta a linha 49, Fonseca-Centro. Nos dois casos, enquanto os passageiros pagavam sua passagem, o papai-aqui, numa demonstração insofismável de poder, deu uma carteirada. Esfreguei o RioCard Senior, com minha foto, no focinho do motorista, que abriu a roleta para minha entrada triunfal.
Os puxa-saco logo surgiram. Em reuniões familiares, minhas primas Dodora e Rosilene juraram que eu não era um mequetrefe qualquer, como os demais, mas alguém que tinha privilégios devido aos próprios méritos. Confesso que me senti um “ungido”, entendi o que o Zé Dirceu pode ter sentido quando era ministro-chefe da Casa Civil. Olhei a plebe ignara, de cima para baixo. Em outras palavras, entendi aquela jornalista casada com pesquisador de renome internacional que incorporou o sobrenome dele ao seu para inveja das colegas.
Os pessimistas podem obtemperar que não é vantagem alguma andar em ônibus xexelentos, sujos e nojentos, com os bancos encardidos, cujas carrocerias são montadas em chassis de caminhão e que nas horas de pico estão sempre lotados. Se o RioCard Senior valesse para avião, vá lá – dizem eles. O que essas cavalgaduras não entendem é que para quem já está inoculado pelo vírus hybris, o que vale é o privilégio da gratuidade, sem limite ao número de viagens,  frente a obrigação dos demais, que pagam para enfrentar os mesmos problemas. Poder é poder.
Agora, posso entender a euforia do senador Eduardo Braga durante as eleições municipais. Mas aí, querendo ir para a Universidade onde trabalho, no Rio, esperei o 703 Santa Rosa-Vila Isabel do Expresso Garcia. Fiz sinal para o primeiro deles, que quando viu minha cabeça branca, não parou. O segundo, também não. O terceiro, nada. No espaço de uma hora, nenhum parou, porque evitam levar portadores do Cartão Senior.
Senti o sabor da derrota. Meus privilégios foram por água abaixo. Motoristas me trouxeram à realidade e me salvaram da doença do poder. Foi aí que me senti como o senador Eduardo Braga depois da eleição: derrotado. Estou curado. Quanto ao senador Eduardo Braga, não sei não. Talvez precise de uma dose mais forte da vacina. As eleições de 2014 vem aí.
(*) – Ribamar Bessa é jornalista, escritor e professor.