Por Ribamar Bessa:

Por isso, com um currículo como esse, por se tratar de um autodeclarado explicador do Brasil, são ainda mais chocantes as declarações de Francisco Weffort à Folha de São Paulo, numa entrevista ao jornalista Cassiano Elek Machado, publicada no último dia 24 de dezembro. Indagado sobre o papel dos bandeirantes na história do Brasil, Weffort respondeu com a “objetividade” e a “neutralidade” do cientista:
– Comecei a fazer o livro preocupado com este tema. Sei que os bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los.
Ou seja, Weffort não é ignorante, ele confessa que sabe muito bem que as bandeiras eram expedições armadas que invadiam aldeias e queimavam malocas para aprisionar índios e vendê-los como escravos. Sabe que os bandeirantes formavam uma espécie de Esquadrão da Morte Rural. Conhece o testemunho de um dos integrantes da expedição chefiada por Raposo Tavares, em meados do séc. XVII, ao rio Madeira, onde viviam cerca de 150.000 índios. O bandeirante revelou ao padre Antônio Vieira seu modus operandi:
“Nós damos uma descarga cerrada de tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia. Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas deles forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a viagem”.
Francisco Weffort sabe tudo isso porque depois que deixou o cargo de ministro da Cultura mergulhou nos arquivos e pesquisou a documentação do período colonial para esboçar um perfil do Brasil, pretensiosamente “na mesma linha de pensadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre (1900-1987)”, segundo a Folha, que informa na abertura da entrevista: “Francisco Weffort passou os últimos anos vivendo no século 16″.
Portanto, nesse tempo todo em que morou no período colonial – e pelo visto permaneceu por lá – o ministro foi vizinho de jesuítas como Jerônimo Rodrigues, que depois de presenciar o assassinato de índios velhos, enfermos e crianças, chamou os bandeirantes de bandidos:
“Nenhuma pessoa, que não tenha visto com os seus próprios olhos tais horrores abomináveis, pode imaginar coisa igual. A vida inteira desses bandidos consiste em ir e vir do sertão, indo e trazendo cativos com muita crueldade, mortes, saqueios e depois vendendo-os como se fossem porcos do mato”.
– Será que tais horrores podem ser compensados pela consideração controvertida que, graças aos bandeirantes, as terras devastadas pertencem hoje ao Brasil?
Quem fez essa pergunta, com muita propriedade e senso crítico, foi o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927). Francisco Weffort, ex-ministro da Cultura e atual explicador do Brasil, mesmo sabendo o que sabe, se apressa em respondê-la afirmativamente, elogiando a “coragem espantosa” dos bandeirantes. Quanto à matança generalizada de índios, Weffort justifica, argumentando que os bandeirantes faziam “parte de uma cultura na qual a violência na vida cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais”.
Na opinião de Weffort é preciso “entender” os bandeirantes para, dessa forma, podermos pagar a dívida que temos com eles. Ou seja, “entender” não apenas no sentido de compreender os mecanismos que permitiram a existência deles, mas no sentido de que devemos julgá-los historicamente com condescendência. Eles foram efetivamente bandidos, mas não podem ser condenados pelo tribunal da História porque, afinal, “conquistaram esta terra”, e eu, tu, nós, “todos temos uma dívida com eles”.
Cabe a pergunta: nós quem, cara pálida? Me inclui fora dessa. Qual a dívida que os índios têm com os bandeirantes? Não seria o contrário?
Para Weffort, hoje com 75 anos, os bandeirantes são os “desbravadores do território nacional” e “heróis da pátria”. Da mesma forma que ele nos convida a “entender” os bandeirantes, nós convidamos o leitor a “entender” Weffort, que frequentou museus e estudou numa escola ufanista, cujas narrativas aboliram os índios da formação do Brasil, considerando-os minorias inexpressivas.
Imagine Weffortzinho, quando criança, visitando o Museu Paulista erguido lá, nas margens plácidas do Ipiranga. Ele contempla aquelas esculturas gigantescas de mármore dos bandeirantes, apresentados como heróis nacionais: Raposo Tavares, Fernão Dias e todo o Esquadrão da Morte. No interior, vitrines mostram dezenas de estojos contendo cachinhos e mechas de cabelos de senhoras da Casa Grande, mas não tem nada da senzala, nem sequer um pentelho de um índio ou de um negro. Apagaram o índio na cabeça do Weffortzinho e o Weffortzão aceitou o apagamento sem discussão.
Essa foi a fonte onde bebeu Weffort, o explicador do Brasil. Se ele tivesse recebido um milhão de dólares para escrever essa besteira, a gente podia até discordar dele, mas era possível “entendê-lo”, assim como ele “entendeu” os bandeirantes. Haveria uma motivação econômica. Mas com a modesta bolsa que recebeu da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo às Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro para escrever esse livro, fica difícil aceitar que ele invada corações e mentes, expandindo preconceitos tão surrados, que já foram desmontados pela historiografia brasileira.
Por que não fazer um esforço, uma vez por todas, para “entender” também a “coragem espantosa” dos índios e o papel deles na História do Brasil? O americanista espanhol Jimenez de la Espada, que foi diretor do Archivo General de Indias, en Sevilla, com ironia e propriedade criticou os brasileiros, por haverem aceitado, passivamente, sem questionamento, a versão que os portugueses deram da história colonial:
“Los portugueses han tenido la doble fortuna de no tener un padre Las Casas y de que los brasileiros hayan hechos suyos, sin discutirlos, los hechos de aquellos hombres que a todo costo les dieron la opulenta y anchisima pátria”.
É isso. Com um explicador do Brasil como esse, não vamos muito longe.