Quando o MPF erra, a União paga

Aconteceu no Rio de Janeiro uma situação inusitada. O Ministério Público Federal denunciou um cidadão por improbidade administrativa mas informou o CPF de um homonino que não tinha nada a ver com a história. Resultado: bloquearam a conta de poupança do titular do CPF errado. Ele entrou com uma ação por danos morais contra a União e ganhou em primeira instância R$ 8.000,00.

Veja o inteiro teor da decisão.

AÇÃO ORDINÁRIA (PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO) Nº 2008.72.00.002375-3/SC

AUTOR: LUIZ ANTONIO MARTINS

ADVOGADO: JONECIR OSTROWSKI LUKASZEWSKI

RÉU: UNIÃO – ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

SENTENÇA

Luiz Antonio Martins ajuizou ação ordinária contra a União, em que almeja o pagamento de indenização por danos materiais e morais.

Segundo os dizeres da petição inicial, o autor foi arrolado como réu em ação de improbidade administrativa promovida pelo Ministério Público Federal (autos n. 2006.51.17.002385-0 – 2ª Vara Federal Cível de São Gonçalo/RJ). Nos autos daquele processo, foi determinado o bloqueio de valores existente em conta de poupança de titularidade do autor, acarretando-lhe transtornos morais, além de despesas que especifica.

Asseverou que a aludida ação foi rejeitada em relação a si, a evidenciar o erro cometido pelo Procurador da República e a ensejar, consequentemente, a responsabilidade civil da União, que reputou objetiva.

A ré contestou (fls. 18/20).

Invocou a impossibilidade jurídica do pedido e requereu a improcedência dos pedidos, forte no argumento de que o caso dos autos não se enquadra em nenhuma das hipóteses em que o erro judiciário enseja a responsabilidade do Estado.
Sustentou inexistentes os danos e teceu considerações sobre o quantum indenizatório.
Houve réplica (fls. 263/269).
À fl. 276 determinei a conclusão dos autos para sentença.
Prossigo para decidir.

– Responsabilidade civil do Estado por ato do Ministério Público.

Inicialmente, convém esclarecer que a pretensão indenizatória não se fundamenta na ocorrência de erro judiciário, mas sim em ilicitude perpetrada por representante do Ministério Público Federal, muito embora o regime de responsabilização do Estado, num e noutro caso, em muito se assemelhem.
Com efeito, conforme narrativa constante da petição inicial, o Procurador da República que deflagrou a ação de improbidade administrativa n. 2006.51.17.002385-0 incidiu em grave erro, pois, embora tenha arrolado como réu a pessoa de Luiz Antonio Martins, Ex-Presidente da Fundação Municipal de Saúde do Município de São Gonçalo, indicou o CPF do autor, homônimo, que nunca exerceu qualquer atividade na aludida fundação. Essa errônea indicação teria acarretado o bloqueio judicial de valores pertencentes a pessoa totalmente alheia aos atos de improbidade narrados naquela exordial.
E tais fatos, além de não impugnados pela União, encontram-se suficientemente comprovados nos autos, valendo transcrever os fundamentos da decisão que determinou a exclusão do autor do polo passivo daquela demanda:

Tendo em vista a quantidade de documentos carreados aos autos pelo requerente, anexos à petição de fls. 983/994, que demonstram à exaustão não ser ele a pessoa de mesmo nome referida no relatório do TCU e, ainda, que à fl. 329 do Apenso 3 encontra-se documento do TCE onde constam os dados qualificativos de Luzi Antônio Martins Presidente da Fundação Municipal de Saúde de São Gonçalo, totalmente diversos dos dados do Requerente, resta evidente o erro material contido na inicial quanto à sua indicação, certamente decorrente de homonímia, razão pela qual deve a ação ser rejeitada de plano em relação ao mesmo. (fl. 104).

A responsabilidade civil do Estado por atos praticados por representante do Ministério Público não é regida pelo art. 37 §6º, da Constituição Federal, norma restrita à atividade administrativa do Estado, o que se conclui da própria colocação topográfica do dispositivo. A responsabilidade do Estado por atos do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Ministério Público, no exercício de suas funções típicas (não-administrativas), tem regramento especial; não se lhes aplica a regra da responsabilidade objetiva, sob pena até mesmo de se inviabilizar o livre desempenho das atividades a eles atribuídas constitucionalmente, essenciais para a preservação do regime democrático.
Nesse sentido, mutatis mutandis, transcrevo precedente do Supremo Tribunal Federal:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO: ATOS DOS JUÍZES. C.F., ART. 37, § 6º.
I. – A responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos dos juízes, a não ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
II. – Decreto judicial de prisão preventiva não se confunde com o erro judiciário ¾ C.F., art. 5º, LXXV ¾ mesmo que o réu, ao final da ação penal, venha a ser absolvido.
III. – Negativa de trânsito ao RE. Agravo não provido.
(RE 429518 AgR/SC, rel. Min. Min. Carlos Velloso, 2ª T., unân., julg. em 05/10/2004, publ. em 28/10/2004).

A responsabilidade dos membros do Ministério Público inegavelmente existe. Mas ela deve ser atenuada em virtude da própria atividade desenvolvida, que é específica e não pode ser embaraçada pelo receio de ensejar a responsabilização estatal com fundamento na teoria do risco administrativo. Deve-se dotar um sistema diferenciado, diante das peculiaridades da atividade exercida por tais agentes, mas sempre censurando excessos funcionais.
Assim, a responsabilidade civil da União por ato praticado por Procurador da República encontra seu fundamento legal no art. 85 do Código de Processo Civil, verbis: O órgão do Ministério Público será civilmente responsável quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude.
Apenas quando o Parquet extrapola os limites de sua atuação, agindo com dolo (ou culpa grave que ao dolo se equipara) ou fraude, é que surgirá o dever de indenizar.
Na hipótese dos autos, não há dúvidas de que houve acentuada negligência do Procurador da República, ao indicar o número do CPF do autor em ação de improbidade movida contra homônimo.
Conforme frisou a magistrada naquele processo, havia documento do TCE nos autos (no apenso 3), onde constam os dados qualificativos de Luzi Antônio Martins Presidente da Fundação Municipal de Saúde de São Gonçalo, totalmente diversos dos dados do Requerente (fl. 104). Com alguma diligência, portanto, poderia o membro do Ministério Público evitar a incorreta qualificação e os prejuízos dela decorrentes.

– Danos morais.

A reparabilidade do dano moral, há muito tempo já admitida na doutrina e na jurisprudência, foi consagrada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos V e X. A solução preconizada no direito possibilitou amenizar o alcance das lesões causadas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de alguém, dentre outras ofensas aos direitos da personalidade.
Comenta Yussef Said Cahali (Dano moral. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 60) que com a Constituição de 1988 que se explicitaram regras fundamentais, de caráter geral, de proteção à pessoa como ser humano na sua amplitude conceitual: dignidade, liberdade de manifestação de pensamento, inviolabilidade de intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Aliás, sob o pálio agora das normas constitucionais, a tutela no plano civil do direito da personalidade, por via da reparação do dano moral, traz latente o interesse público na preservação dos valores tutelados.
Acerca da conceituação de dano moral, discorre Fernando Noronha (Direito das obrigações: fundamento do direito das obrigações e introdução à responsabilidade civil. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. pp. 566/567): em contraposição aos danos patrimoniais, são extrapatrimoniais aqueles que se traduzem na violação de quaisquer interesses não suscetíveis de avaliação pecuniária. A estes danos é tradicionalmente dada, no Brasil, a denominação de danos morais, que é adotada também em textos legislativos, com destaque para os incs. V e X do art. 5º da Constituição Federal e para o art. 186 do Código Civil (preceito que é o único deste diploma em que se fala em “dano moral”, mas constituindo este fato progresso significativo em relação ao Código de 1916, que a tal respeito era simplesmente omisso). É em atenção a essa designação tradicional que dizemos que os danos extrapatrimoniais podem ser chamados também de danos morais em sentido amplo.
Para que haja a obrigação de indenizar o dano é necessário que estejam presentes os pressupostos da responsabilidade civil. Segundo Fernando Noronha, são (op. cit., pp. 468/469):

a) que haja um fato (uma ação ou omissão humana, ou fato humano, mas independente de vontade, ou ainda um fato da natureza);
b) que esse fato possa ser imputado a alguém, seja por se dever à atuação culposa da pessoa, seja por simplesmente ter acontecido no decurso de uma atividade realizada no interesse dela;
c) que tenham sido produzidos danos;
d) que tais danos possam ser juridicamente considerados como causados pelo ato ou fato praticado, embora em casos excepcionais seja suficiente que o dano constitua risco da própria da atividade do responsável, sem propriamente ter sido causado por esta;
(…)
e) é preciso que o dano esteja contido no âmbito da função de proteção assinada à norma violada. Isto é, exige-se que o dano verificado seja resultado da violação de um bem protegido.

Adverte ainda (op. cit., p. 469):

Na doutrina e sobretudo na jurisprudência, geralmente os únicos requisitos que se indicam são somente o segundo, o terceiro e o quarto. Assim, afirma-se que a responsabilidade civil envolve três requisitos: um dano, um nexo de imputação e um nexo de causalidade. É que, na vida real, o primeiro e o quinto dos requisitos são de importância menor.
O último requisito (cabimento no âmbito de proteção da norma violada) é de somenos importância nos tempos atuais, em que se pode dizer ser regra quase que sem exceções a que impõe tutela de praticamente todos os danos, sejam à pessoa ou a coisas, patrimoniais ou extrapatrimoniais, individuais ou coletivos. O primeiro (fato gerador) também pode ser negligenciado, embora por uma razão diferente. Se o fato, mesmo que antijurídico, não causar danos, nunca surgirá uma obrigação de indenizar, mesmo que ele possa ser relevante para outros efeitos.

Por sua vez, nexo de imputação deve ser entendido o fundamento, ou a razão de ser da atribuição da responsabilidade a uma determinada pessoa, pelos danos ocasionados ao patrimônio ou à pessoa de outra, em conseqüência de um determinado fato antijurídico. É o elemento que aponta o responsável, estabelecendo a ligação do fato danoso com este, enquanto por nexo de causalidade ou causa do dano, o fato que contribuiu para provocá-lo, ou para agravar os seus efeitos. Em princípio só existe obrigação de reparar os danos que tenham sido causados por fatos da responsabilidade da pessoa obrigada a indenizar, embora estes não tenham de ser necessariamente resultantes de sua atuação: poderão ser fatos de outra pessoa, por quem aquela seja responsável, ou fatos de coisas ou animais pertencentes a este (op. cit., pp. 472 e 587).
Quanto à determinação dos danos que podem ser considerados causados pelo fato imputado, importante transcrever (op. cit., pp. 610/611):

Em primeiro lugar, é preciso que o dano não tivesse acontecido se não fosse o fato atribuído ao responsável indigitado. Por outras palavras, o fato terá de ser conditio sine qua non do dano.
Mas não basta que o lesado prove que um determinado fato contribuiu para o dano, por ter sido uma das conditiones sine quae non dele. Nem todas as condições sem as quais não teriam acontecido o dano podem ser consideradas juridicamente como causas deste.
Por isso, e em segundo lugar, é preciso que aquele fato atribuído ao responsável possa ser considerado, em geral, causa adequada do dano verificado. O fato será causa do dano quando este fosse conseqüência normalmente previsível daquele, de acordo com id quod plerumque accidit, isto é, conforme as regras de experiência comum.
Para sabermos se o dano deve ser considerado conseqüência normalmente previsível, devemos colocar-nos no momento anterior àquele em que o fato ocorreu e tentar prognosticar de acordo com as regras de experiência, se era possível antever que ele viesse a ocorrer. Quando a resposta for afirmativa, teremos um dano indenizável.
(…)
Se, de acordo com a formulação positiva, pudermos concluir que o fato favoreceu a produção do dano, que assim poderá ser considerado conseqüência norma, previsível, daquele, teremos a relação de causalidade como demonstrada.
Quando não se possa afirmar seguramente que o dano foi conseqüência normal, efeito provável do fato, importa considerar a formulação negativa. A relação de causalidade ainda será considerada como demonstrada quando não se possa considerar o dano como conseqüência extraordinária, indiferente ao fato atribuído ao indigitado responsável.

A partir dessas considerações, examino o caso concreto.
O só fato de ser arrolado como réu em ação de improbidade administrativa seria suficiente para amparar a pretensão indenizatória, principalmente levando-se em consideração que o autor é militar (fl. 58), função em que a idoneidade moral e a probidade são especialmente valorizadas.
Em acréscimo, convém observar que foram bloqueados valores existentes na conta de poupança de titularidade do autor (fl. 21), fato que lhe causou inegável vexame frente aos funcionários da instituição bancária, além da indisponibilidade de vultoso numerário (fl. 113), compelindo-o a contrair empréstimos perante instituições financeiras (fls. 111 e 121).
Observe-se, ademais, que o feito tramitou na Vara Federal de São Gonçalo/RJ, tornando ainda mais penoso ao autor o esclarecimento da situação para se ver excluído daquele processo.
Quanto à quantificação dos danos morais, segundo entendimento preconizado pelo Superior Tribunal de Justiça, o magistrado deve estar atento aos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade, observando as circunstâncias do caso concreto, sob pena de o quantum mostrar-se manifestamente exagerado e promover o enriquecimento sem causa, ou irrisório, distanciando-se das finalidades da lei (REsp 596.438/AM, Rel. Min. Barros Monteiro, DJU 24.5.2004; REsp 555.043/PA, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU 23.3.2004; REsp 549.719/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 11.11.2003; AGA 458.686/PR, Rel. Min. Castro Filho, DJU 10.2.2004; REsp 351.779/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, DJU 9.2.2004; REsp 435.203/MA, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU 15.12.2003).
Com base nas informações contidas nos autos, considerando que a fixação do quantum compensatório não deve exceder os limites da razoabilidade e, ainda, não possibilitar o enriquecimento sem causa à parte, defino o valor dos danos morais devidos ao autor em R$ 8.000,00 (oito mil reais).

– Danos materiais.

Os gastos com deslocamento entre as cidades de Florianópolis e Rio de Janeiro estão comprovados às fls. 124 e 126, fazendo jus o autor à compensação de R$ 162,00 (cento e sessenta e dois reais) em relação a cada um dos trajetos.
As despesas com combustível não estão bem demonstradas, tampouco àquelas efetivadas com a contratação de advogado.
Não há, outrossim, provas dos prejuízos decorrentes da obtenção de empréstimos bancários, cujos transtornos, de qualquer forma, já foram considerados quando da valoração dos danos morais.
Não visualizo, por fim, a existência de lucros cessantes em face da indisponibilidade do montante bloqueado, certo que o dinheiro permaneceu sendo corrigido e acrescido de juros pelos índices da poupança.
Em face do que foi dito, julgo parcialmente procedentes os pedidos para condenar a ré ao pagamento de R$ 8.000,00 (oito mil reais) a título de danos morais, acrescidos da taxa SELIC a partir de 4 de agosto de 2006 (data do evento danoso – arts. 398 e 406 do Código Civil), e de R$ 324,00 (trezentos e vinte e quatro reais), acrescidos da taxa SELIC a partir de 1 de setembro de 2006 (data do desembolso).
Sucumbente o autor em parte mínima do pedido, condeno a ré ao reembolso das despesas processuais e ao pagamento dos honorários de advogado, que fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação (art. 20, §4º, combinado com art. 21, parágrafo único, do Código de Processo Civil).
Dispensado o reexame necessário (art. 475, §2º, do Código de Processo Civil).
Na hipótese de interposição de recurso de apelação, aferida a tempestividade e a regularidade do preparo, recebo-o desde logo nos efeitos devolutivo e suspensivo, determinando a intimação da parte contrária para apresentar contra-razões; após, remetam-se os autos ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Florianópolis, 24 de agosto de 2009.
OSNI CARDOSO FILHO
Juiz Federal