PÃO MOLHADO NA CPI

Por Ribamar Bessa: 
Depois de um jantar opíparo de pirarucu-de-casaca regado à pimenta murupi, fiquei jiboiando diante da televisão. No noticiário, já de madrugada, vi que a CPI do Cachoeira engavetou os requerimentos para ouvir três governadores, cinco deputados e o dono da Delta, Fernando Cavendish, negando também pedidos de quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico deles.
A CPI não chamou qualquer tubarão para depor, nem ouviu ainda o vilão, senador Demóstenes Torres, que em algum momento chegou até a ser cogitado para candidato a presidente da República pelo DEM (vixe, vixe). O próprio Carlinhos Cachoeira, chefe da quadrilha, conseguiu se safar provisoriamente, graças à chicana protelatória de seu advogado, Márcio Thomaz Bastos, o criminalista mais caro do país. A CPI até agora só convocou peixe pequeno, arraia miúda. Os grandes foram blindados.
Fui dormir, inconformado com a notícia indigesta, que me fez ter um pesadelo. Sonhei que, entre os bagrinhos convocados, havia um cidadão amazonense, de nome Rodrigo Freire Souza, assistente social, funcionário da Prefeitura do Careiro (AM), 28 anos, do signo de Libra, casado, com um filho. Sonhei – essas coisas doidas de sonho – que para atender a convocação, ele saiu de casa e foi nadando, de bubuia, no meio do lixo que boiou com a cheia do Rio Negro, em toneladas, espalhando fedor e doença. Chegou em Brasília, todo molhado, inchado como um pão na água.
Não podia pagar advogado, mas deu um depoimento-bomba com revelações que deixaram os parlamentares atordoados. Embora a sessão tenha sido secreta, a sociedade brasileira ficou sabendo de tudo, porque o sonho foi filmado por câmera especial Full HD, dotada de poderoso zoom óptico, que capta imagens até do sussuruim – um piolho minúsculo que dá na cabeça do mucuim – e que foi adaptada para filmar pensamento. Vejam acima foto do depoente indo a Brasilia, deixando mulher e filho ao fundo.
Durante o sonho, o sonhador, no caso este locutor que vos fala, se comprometeu a publicar tudo no Diário do Amazonas que é, agora, o que passo a fazer.
No templo entre doutores
Quais foram as revelações-bomba? Calma, que o Brasil é nosso, avexado (a) leitor (a). Preciso informar, antes, que a CPI quebrou o sigilo bancário e telefônico de Rodrigo Souza, fazendo descobertas sen-sa-cio-nais. O depoente é titular de uma conta única, onde seu salário de R$2.615,27 é depositado mensalmente pela Prefeitura. Ele vive no vermelho e está esperando a abertura de uma agência no Careiro para renegociar sua dívida atual de R$138,26.
Um dos membros da CPI, o impoluto senador Collor de Melo, fuçou as ligações telefônicas e descobriu outra informação de transcendental importância para moralizar o país. É que o depoente, em sua adolescência, namorou escondido a irmã do Ângelo, seu melhor amigo. Gravaram um telefonema dele para a Kelly – esse é o nome dela – marcando um encontro no shopping. Collor queria saber se o depoente havia pago com fundos públicos do Tesouro Nacional o sorvete de cupuaçu que a Kelly consumiu, alegando que se tratava de um dado importante para investigar a organização criminosa do Cachoeira.
– Não desviemos o foco – protestou o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), com muita firmeza, apesar daquela vozinha de taquara rachada e da falta de um “o” do borogodó no final do nome trocado por um reles “e”. Ele cobrou com o “e” do bereguedé:
– Que o depoente nos conte o que sabe sobre as ligações de Carlinhes Cachoeira com Alfrede Nascimente, ex-ministro do Transporte e com o prefeito de Manaus, Amazonine Mendes. Queremos saber tudo sobre os contratos bichados das obras rodoviárias e do lixo de Manaus.
Foi aí que Rodrigo desandou a falar, mas – essas coisas doidas de sonho – quem dava o depoimento, de repente, como num passe de mágica, não era mais o adulto, era a criança, de 12 anos, que tinha a cara do filho Rodriguinho. O menino fez perguntas incômodas:
–  Por que a CPI ouve ratinhos magros e dispensa gatos gordos como os governadores Marconi Perillo (PSDB-GO), Agnelo Queiroz (PT-DF) e Sérgio Cabral (PMDB-RJ), articulados à Delta, o braço financeiro do contraventor Cachoeira? Houve acordo partidário entre PSDB, PT, PMDB e DEM: “não convoca o meu, que não convoco o teu”? Como é que Cachoeira nomeava secretários de governo?
O verbo e o vento
O depoimento prosseguiu. O impoluto senador Collor, com o dedo em riste – essas coisas doidas de sonho – fez uma exigência que, embora insólita, foi aplaudida por todos os membros da CPI. Só eu, que estava sonhando, achava absurdo, mas todo mundo encarou como normal. Usando uma palavra vulgar, ele desafiou:
– Exijo que o depoente conjugue, no presente do indicativo, o verbo peidar.
Foi! Foi isso mesmo! Um silêncio profundo tomou conta da sala da CPI. Todo mundo conteve a respiração, numa espécie de “habeas flatus” preventivo. Os parlamentares e a imprensa aguardavam aquilo que seria a revelação-bomba. A expectativa era enorme. O depoente, então, pigarreia, olha os parlamentares, faz um gesto abarcando todos os integrantes da CPI, aponta pra eles e responde:
– Vós peidais!
O impoluto senador Collor insiste:
– Só isso? Repilo! O depoente está escondendo informação. Conjugue o verbo em todas as pessoas ou poderá sair daqui preso!!!
Rodrigo Souza, que nas reuniões familiares costuma conjugar o verbo na primeira pessoa do singular, deu uma senhora aula de português. Explicou que o verbo em questão era um verbo defecativo, como o verbo ventar, que verbos defecativos não apresentam toda as formas verbais, deixando de ser conjugado em determinadas pessoas, tempos ou modos. Exemplificou com o verbo latir. Ninguém fala: eu lato. Não existe isso. No caso do verbo em questão, se conjuga só na segunda pessoa do plural, admitindo-se, em situações excepcionais, a segunda pessoa do singular:
 – Tu peidas – ele disse apontando Collor.
Eis que de repente – essas coisas doidas de sonho –  a avó do Rodrigo, dona Elisa, adentra o recinto e incentiva o neto-criança a continuar doutrinando os parlamentares:
– Parece Jesus, no templo, entre os doutores – ela disse, embevecida com tanta sabedoria. Foi quando a Preta, mãe do Rodrigo, depois de enviar um torpedo vaccarezza para o filho – “você é nosso e nós somos teu” – perguntou, angustiada:
– Onde estavas, que eu e o Geraldão te procuramos há três dias?
Rodrigo respondeu imitando a fala das pessoas no Evangelho de Lucas:
– Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devia estar na casa do meu Povo?
No final do sonho, Rodrigo, que é noveleiro, sugeriu que a CPI convocasse Débora Falabela, a Rita/Nina de “Avenida Brasil”. Ela, que viveu no lixão, que está lavando dinheiro e que vive escutando detrás das portas as falcatruas planejadas pelos outros, pode falar sobre as relações de Carlinhos Cachoeira com políticos, empresários, governadores, judiciário e imprensa.
Para quem não sabe, Rodrigo, apelidado de “Pão Molhado”, é meu sobrinho querido (o bicho não presta, só vive tirando sarro dos outros). Juro que o que contei aqui é a expressão da verdade, somente da verdade, nada mais que a verdade. Minha imaginação tem limites. Eu não seria capaz de inventar uma histórias dessas. Quero ver minha mãe mortinha no inferno, se estiver mentindo. Sonhei mesmo – essas coisas doidas que só aparecem em sonho. Sábia é dona Elisa que sempre recomendou evitar comidas pesadas à noite. Acordei angustiado. Não sei como interpretar o sonho. Quem souber, por favor, cartas à redação.
P.S. Hoje inicia a venda de pré-lançamento do livro “Essa Manaus que se vai” em www.institutocensus.com.br/ed
(*) Ribamar Bessa é jornalista, professor e escritor.