Os surdos, o carnaval e as milícias digitais

Os surdos, o carnaval e as milícias digitais

Naquele domingo de carnaval, o bloco “Gargalhada”, criado em 2005, desfilava na Av. 28 de Setembro, Vila Isabel, zona norte do Rio. A bateria com oito ritmistas surdos animava foliões cadeirantes, anões, cegos, downs e surdos, que reivindicavam o direito à alegria coletiva. Do alto do carro de som, dois intérpretes traduziam as letras das músicas e ensinavam expressões em Língua Brasileiras de Sinais – LIBRAS – a pessoas ouvintes, entre elas o Rei Momo que, com a voz nas mãos, saudou os brincantes nessa língua.

De repente, vejo uma cara conhecida fantasiada de havaiana, com saia longa estampada e colar de flores. Elena, minha ex-aluna no curso de pedagogia, embora surda, sambava graciosamente com passos ritmados, como se ouvisse a marchinha do bloco criado pelo “Instituto Interdisciplinar Rio Carioca” em parceria com os “Anjos de Visão”. A música vibrante contagiava a porta-estandarte com síndrome de Down, as duas drag queens que atuavam como rainha e princesa e as duas musas surdas – as “gargalhetes”.

Essa amostra do esforço para conquistar a inclusão, o respeito à diferença e o convívio fraterno vem sendo minada pelo fel do fanatismo, que contamina as redes sociais. Usuários de LIBRAS passaram a ser bombardeados por mensagens diárias enviadas por milícias digitais e robôs do gabinete do ódio, autores de vídeos feitos com avançadas técnicas de computador, repletos de fake news. Lula é apresentado como “adorador de Satanás, a favor da pedofilia e da morte de crianças”. Ressuscitaram a “mamadeira de piroca”.

As mensagens, que envenenam corações e mentes, só conseguem enfeitiçar inúmeros surdos porque se ancoram em Michelle Bolsonaro, que aprendeu LIBRAS com seu tio portador de deficiência auditiva. Ela discursou nessa língua na posse do seu “conje” como presidente, dando maior visibilidade e esperança à comunidade surda – é verdade – o que é aproveitado agora para endossar mentiras contra opositores, como ressalta Elena no debate com outros surdos que tem visão de mundo contrária à sua.

Dentro da bolha

Rosa, colega de turma de Elena, me encaminhou alguns vídeos postados em grupo fechado. Lá, ela responde às mensagens primárias e moralistas, que agridem os fatos e desrespeitam a inteligência dos surdos. Acabam sendo hegemônicas as versões tais como “Lula é o anticristo”, “Dilma matou um soldado” e, excetuando os dois indicados pelo atual presidente, “os ministros do STF são todos comunistas” – termo usado como “palavrão” ofensivo contra quem defende a democracia e critica a ditadura.

– “Nenhum verdadeiro católico deve apoiar, em hipótese alguma, a bandeira vermelha do comunismo petista” – ordena uma das mensagens repassada para fora do grupo por alguns surdos aprisionados na bolha da intransigência e da cegueira. Outra imagem impublicável exibe Cristo crucificado com uma mulher seminua, agachada de quatro diante dele, com a pergunta: “Como considerar isso como arte, cadê o respeito à religião?”.  Uma legenda atribui aos comunistas a autoria da obra. Também culpa a pedagogia do oprimido de Paulo Freire por pretensas agressões de alunos a seus professores.

As mensagens das milícias digitais servem de pretexto para evitar discutir o Brasil. Sem alternativas, surdos isolados do resto do país mergulham em profunda solidão. Elena, voz dissonante dentro da bolha, reconhece o direito de cada um decidir em quem vai votar, mas discorda do uso de apenas um critério para a escolha do candidato que as milícias digitais querem reeleger, sob a alegação de ser ele “o único defensor de LIBRAS”. Ela comentou:

– “Não é verdade, mas mesmo que fosse, o país é muito maior que isso. Surdo come, usa gás e gasolina, vai ao supermercado, sofre com inflação, desemprego, fome, convive com gente que defende tortura e racismo, que fala contra vacina, que nega ciência, que prega violência com armas”.

Como resposta, alguém do grupo contra-atacou:

– “Todos países do mundo aumentaram preço do gás e gasolina. Mortes por Covid-19 aconteceram em Cuba, China, Coréia e Venezuela. Tortura e racismo existem em países comunistas. Você defende candidato bandido e corrupto, que desrespeita comunidade surda e é contra língua de sinais?”.

A voz nas mãos

Não recebi de Rosa cópia de qualquer mensagem de Elena sobre um assunto tabu para os paladinos da luta contra a corrupção: Queiroz, as “rachadinhas” e o cheque de R$89.000,00 depositado na conta de Michelle, considerada nas postagens das milicias como a primeira e única defensora de políticas públicas favoráveis a Língua de Sinais, ela e seu “conje”.

As milícias digitais silenciaram sobre a recomendação de Jair Bolsonaro ao procurador-geral da República para negar o pedido da Federação Nacional dos Surdos (FENEIS) de substituir a língua portuguesa pela Língua Brasileira de Sinais em processos seletivos feitos por surdos. Augusto Aras obedeceu, “porque o português é a língua oficial do Brasil”. Seu parecer mereceu repúdio em moção apresentada no dia 20 de setembro de 2021 à Câmara de Deputados pelas deputadas Rejane Dias (PT-PI), Erika Kokay (PT/DF) e Tereza Nelma (PSDB/AL).

Presidentes anteriores são considerados mentirosamente como “inimigos de Libras”.  As milícias omitem que duas leis foram sancionadas por Fernando Henrique Cardoso: uma, de dezembro de 2000, estabeleceu normas e critérios para a promoção da acessibilidade de pessoas portadoras de algum tipo de deficiência; a outra, de abril de 2002, reconhece “como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais e outros recursos de expressão a ela associados”.

Ocultam também que a LEI DE LIBRAS foi regulamentada em dezembro de 2005 por decreto assinado pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva e o ministro da Educação, Fernando Haddad, que determina a inclusão da Língua Brasileira de Sinais como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores e optativa nos demais cursos de educação superior. E no seu capítulo III normatiza a formação de docentes para o ensino de LIBRAS em curso de graduação e de licenciatura plena em Letras.

Alegria das “gargalhetes”

Graças ao decreto Lula-Haddad, um ano depois, em 2006, a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) iniciou a licenciatura em Letras-Libras inicialmente com 55 alunos aprovados no vestibular. A metade deles – 19 surdos e 8 ouvintes – concluiu o curso. A cerimônia de formatura teve como orador Silvio Márcio Freire Alencar, de quem tenho orgulho de ser tio. Ele fez seu discurso em Libras com tradução simultânea dessa língua visual-espacial ao português oral-auditivo. As mãos venceram o silêncio.

Razões afetivas e familiares aguçaram meu interesse pela língua de comunicação e de identidade dos surdos, ampliado na viagem pelo rio Tiquiê, em novembro de 2003, quando com a professora da Universidade de Oslo (Noruega), Eva Johannessen, visitamos a comunidade de Matapi e a escola Tukano com 18 alunos, um dos quais, de 7 anos, era surdo. Rosalino seu professor, descreveu a forma como interagia com os colegas através do riso, do olhar e dos gestos.

Da mesma forma que LIBRAS, as línguas indígenas são discriminadas e quando se trata de Línguas Indígenas de Sinais, duplamente ignoradas. Uma delas é a Língua de Sinais Urubu-Kaápor usada em cinco aldeias do Maranhão pelos Ka´apor, que possuem taxa elevada de surdos, um para cada grupo de 75 ouvintes. Outra é a Língua Terena de Sinais (LTS) usada em Cachoeirinha, Miranda (MS), com gramática e processos próprios de comunicação. Essas línguas estudadas por especialistas evidenciam que o Brasil é um país multilíngue até mesmo neste terreno.

Minha ex-aluna Elena leva combate solitário contra a barbárie implantada pelas milícias digitais. Quando este pesadelo passar e uma estrela brilhar no céu, as “gargalhetes” voltarão a desfilar, sepultando o ódio que corrói as entranhas do país.