OS ELEITORES PREFULGENCIADOS

Por Ribamar Bessa:
Você se considera um (e) leitor prefulgenciado? Da resposta a esta pergunta depende os destinos da tua cidade. No próximo domingo, dia 28, quando ocorre o segundo turno das eleições municipais, mais de 31 milhões de eleitores voltam às urnas para escolher os prefeitos de 50 cidades brasileiras, das quais 17 são capitais. Apenas os eleitores prefulgenciados saberão reconhecer aquele que é, efetivamente, o melhor candidato.
As nossas cidades estão pedindo, implorando, prefeitos ou prefeitas que as tratem com carinho. É o caso de Manaus. Nesta semana, em trânsito para o Rio Preto da Eva, caminhei algumas horas pelas ruas da capital, fiquei chocado em ver como a desordem urbana atingiu proporções inacreditáveis: Manaus está mais esburacada, maltratada, suja, sem calçadas, com um trânsito caótico, desarborizada, com problemas sérios na coleta do lixo e no abastecimento de água.
Nos últimos quatro anos, Manaus apanhou mais do que mulher de malandro. A qualidade de vida diminuiu sensivelmente. Quem reclamou, recebeu como resposta: “Então, morra”. Manaus não tem prefeito. Os eleitores que há quatro anos escolheram Amazonino Mendes, não eram, definitivamente, prefulgenciados. Aliás, Amazonino é a negação do prefulgenciamento. Saudades do Serafim (PSB)!
A gestão do Amazonino foi tão ruim, mas tão ruim, que ninguém quer seu apoio, que tira votos. A campanha da senadora Vanessa Graziottin jura que, por baixo do pano, o atual prefeito encoraja o outro candidato, Arthur Virgilio Neto, cujos partidários lembram que o vice de Vanessa era secretário do Amazonino. Só eleitores prefulgenciados, seja lá o que isso signifique, podem se situar no meio de tanta confusão. Para ajudar os (e) leitores, apresento aqui o criador da palavra.
Ô cem fim
Na realidade, hoje eu apenas queria comentar um livro, mas as eleições não deixaram e acabei fazendo um gancho. Foi de lá, desse livro, que tomei emprestado o adjetivo, criado por um mineiro do Vale do Jequitinhonha, que se autodefine como “astrofísico, teólogo e prefulgenciado”. Ele é Paulo Marques de Oliveira, um dentista prático aposentado, de 86 anos, que nasceu em Comercinho do Bruno e mora em Salinas (MG), um município produtor de requeijão, carne de sol, cachaça e cultura popular vigorosa.
Paulo Marques escreveu Ô fim do cem, fim, com o objetivo de explicar a estudantes e adultos os fundamentos do mundo. Começou a rabiscar os  cadernos nos anos 50, na época da guerra fria, quando temia que uma bomba atômica acabasse com o planeta. “Deus é maior. Ele pode destruir com o calcanhar quem quiser destruir a terra dele” – ele diz.
Marina Acúrcio, da Vereda Editora, viu os cadernos e não duvidou: fez uma edição caprichada, com capa dura, reproduzindo as folhas dos cadernos manuscritos com uma letra aprimorada de caderno de caligrafia e desenhos de grande beleza gráfica, que parecem bordados a mão.
A escrita do astrofísico prefulgenciado não se enquadra nas regras e normas da escrita padrão, no que diz respeito à sintaxe e à grafia. É o tipo de escrita praticada por autores que vivem predominantemente no universo da oralidade, e que ao migrarem para o mundo da escrita, mostram seu lado transgressor. Enquanto a escrita alfabética é linear, a escrita prefulgenciada rompe com a linearidade, se aproximando muito da estrutura de um hipertexto.
– Ensino tudo – diz o autor do livro.
Ele não está exagerando. O livro é uma enciclopédia, que penetra em todos os campos dos saberes. Numa sociedade com o saber hiperespecializado, onde o otorrino não cuida do ouvido direito do paciente porque sua especialidade é o ouvido esquerdo, Paulo Marques, cuja origem é o mundo não especializado, assombra porque discorre sobre tudo. Sua temática é variada e dispersa para nossas padrões, mas essa é a forma de se legitimar sábios enraizados na cultura popular.
Escrita e Oralidade
O livro entra no campo da medicina popular para nos apresentar remédios naturais e fitoterápicos e opinar sobre doenças, sobre o parto, a anestesia, a saúde bucal. Fala de política, religião, pedagogia, filosofia, astronomia, agricultura, engenharia, matemática, química, história, literatura, culinária e oscambau a quatro. Mas exibe ainda os inventos do autor: vários tipos de forno, inclusive um deles para processar lixo, além de bateria hidrelétrica, bateria atômica, satélite para acabar com a noite, chuveiro de água esquentada por um lampião, camisa para não morrer afogado e por aí vai.
– Ele é um homem que se liberta, sem censura, para não enlouquecer. Paulo Marques, como Arthur Bispo do Rosário, expressou a sua missão de forma artística –  comenta a editora, Marina Acúrcio.
O livro e seu autor foram celebrados recentemente por dois programas de Pós-Graduação, um da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e o outro da UNIRIO que organizaram uma mesa-redonda, coordenada pela doutora Isabel Missagia de Mattos (UFRRJ), com o objetivo de discutir questões relacionadas à Memória, Escrita e Oralidade.
O evento foi iniciado com a leitura feita por Benita Prieto de trechos do livro de Paulo Marques, seguida das falas do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (UNICAMP), que discorreu sobre Literatura, Cultura e Educação Popular, da psicóloga Patricia Reinheimer, que abordou o tema da Arte e Saúde Mental e, finalmente, desse locutor que vos fala, que fez uma analogia da escrita de Paulo Marques com a dos cronistas índios dos Andes e dos atores da Cabanagem na Amazônia.
O evento se encerrou com o lançamento do livro de Paulo Marques, uma performance de Ramon Mello, a partir da obra Astronauta de Mim, de Rodrigo Souza Leão, e a exibição do documentário O Fim do Sem Fim de Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi.
O nosso dentista prático é um prefulgenciado, porque foi capaz de elaborar um discurso lúcido e confuso, delirante e racional, provinciano e universal, religioso e científico. No final do evento, sai convencido de que ou todos nos prefulgenciamos para entender melhor o mundo e não nos deixarmos enganar, ou estamos liquidados. Sacou agora, (e) leitor, porque só quem é prefulgenciado pode escolher o melhor candidato a prefeito?
P.S. Na passagem por Manaus, aproveitei para visitar uma casa do Prosamin, que só conhecia de longe. Fui lá no Parque Residencial Manaus (entre as ruas Ramos Ferreira e Ipixuna), conversei com Everaldo Brito, presidente da Associação dos Moradores do Parque Residencial (Ampare) e com a socióloga Lacy da Mata, vice-presidente. Eles foram muito gentis, disponibilizando tempo para um dedo de prosa, me convidando a percorrer os espaços interiores de uma das casas. Voltaremos ao assunto.

 (*) Ribamar Bessa é escritor, jornalista e professor.