OS DOIDINHOS NÃO TE ESQUECEREMOS

Por Ribamar Bessa:

OS DOIDINHOS NÃO TE ESQUECEREMOS

Ele era um marginal no sentido mais belo e profundo da palavra. Vivia à margem. Era um ribeirinho da terceira margem do rio. Rogelio Casado Marinho Filho, 63 anos, médico psiquiatra, artista, dramaturgo, cartunista, cinegrafista, fotógrafo, blogueiro, boêmio e festeiro, amigo e encrenqueiro, brigou ao lado dos índios, dos negros, das mulheres, dos homossexuais, dos sem-terra, dos sem-teto e dos moradores de rua, mas sobretudo dos “sem razão” – os portadores de doença mental. Saiu da vida lutando. Parece até que escolheu o dia para o último adeus: o enterro foi na quarta (18), Dia da Luta Antimanicomial.

Depois de cursar medicina na Universidade Federal do Amazonas, na década de 70, Rogelio fez residência médica no Instituto de Psiquiatria Social de Diadema (SP), de onde retornou a Manaus com ideias revolucionárias da antipsiquiatria. Trouxe-nos David Cooper, Ronald Laing e Franco Basaglia que criticavam o tratamento inapropriado, excludente e carcerário dispensado a tais pacientes. “A loucura – ele dizia – é uma doença, mas o louco não é doente. Doentia é a relação dele com a família e a sociedade e é essa relação enferma que deve ser tratada”.

Foi uma lufada de vento libertário arejando o Amazonas em plena ditadura militar. Com Silvério Tundis e Manuel Galvão, Rogelio iniciou a luta antimanicomial em nossa terra, propondo uma reforma psiquiátrica radical. Exercitou a solidariedade permanente com aqueles que sofrem a forma mais completa de solidão – a loucura – buscando retirá-los daí e colocá-los no estado de “dualidão”, uma solidão a dois, como queria Nietzsche citado em seu blog. Defendeu os pacientes do Hospital Eduardo Ribeiro da violência, do choque elétrico, da prisão. Conquistou aliados para a causa.

Orgulho louco

Solidário, reuniu quem sofria de transtornos psíquicos, os seus familiares, os técnicos de saúde mental e os simpatizantes na Associação Chico Inácio – filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial – que fundou para lutar pela inclusão dos loucos na vida da cidade. No seu blog, inaugurado num 18 de maio – et pour cause – registrou carinhosamente as lembranças dos doidinhos locais. Participou das conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde mental, atuando na linha de frente. Denunciou os agentes da violência institucional dentro do hospício.

O tamanho da sua indignação contra o preconceito, a exclusão e o horror dos hospícios era calibrado pela ternura que mantinha em relação aos pacientes. Na direção do hospital psiquiátrico, organizou um projeto de terapia ocupacional que produziu uma tonelada de alimentos plantados pelos pacientes e, quando demitido, fez greve de fome acorrentado à sua mesa de trabalho, o que deu mais visibilidade à luta. Depois, coordenou o Programa Estadual de Saúde Mental e contribuiu para elaborar a proposta de Lei de Saúde Mental sancionada em 2007.

Festeiro, participou da fundação da Banda Independente da Confraria do Armando (BICA) e, no carnaval, organizou o Bloco Unidos do Eduardinho que reunia os pacientes e malucos-beleza de Manaus, concentrados na esquina da rua 24 de maio com a avenida Eduardo Ribeiro, além de outras manifestações: paradas do orgulho louco, abraços simbólicos, audiências públicas, exposições de fotos, seminários, cursos. Fotografou, registrou e documentou as lutas sociais no Amazonas, criando um rico acervo de interesse para a pesquisa histórica.

Ali onde havia alguém sofrendo, lutando, resistindo, ali estava Rogelio Casado, que ajudou ainda a fundar a Associação dos Amigos de Manaus (Amana) e o movimento SOS Encontro das Águas.

Picica Análise

É Freud, mas tenho a honra de ter inventado com ele a Picica Análise. Conto como foi. Depois de uma longa convivência iniciada nas assembleias dos professores da APPAM e da ADUA em que ele estava lá, participando e fotografando, a amizade se consolidou em outros movimentos: na oposição sindical dos metalúrgicos, na Pastoral Operária com o padre Guidotti, na luta indígena e no jornal Porantim que chegou a publicar fotos de sua autoria, no movimento Alma Negra com o Nego Nestor, na fundação do PT e também na luta contra o internamento forçado nos hospícios.

Algumas crônicas dominicais que escrevi foram reproduzidas no blog Picica, uma delas intitulada “A Fábrica de Loucos”, de 1995, apresentada por ele anos depois em nota generosa que exibo agora como uma medalha no HISTÓRICO do site Taquiprati. Lá ele me trata de compadre porque, numa festa junina, ao redor de uma fogueira na Praça XIV, de pura farra brincamos: “Santo Antônio disse, São Pedro confirmou, que nós seremos compadres, porque São João mandou”. Compadres ficamos, sacramentando a amizade. Compadres de fogueira.

A fogueira permitiu que meu compadre fosse personagem de algumas crônicas. Na Mansão do Tarumã, ele foi convocado a fazer leitura “picica analítica” do caráter do então governador Amazonino Mendes. Lá está escrito: “Dar pissica, em língua amazonense, significa dar palpite. Quem dá pissica é palpiteiro enxerido. Portanto, reconheço que o que vamos fazer com ajuda de meu compadre, o pissica analista Rogélio Casado, é pura pissica análise”. Assim, pudemos entrar no cérebro do Amazonino para ver o que tinha lá dentro. Nem Freud e Jung seriam capazes de tal façanha.

Há um mês, o câncer levou a companheira de luta e mãe de seu filho Juan, de 9 anos. De todos os lados surgiram nas redes sociais amigos fieis que ficaram a seu lado. Logo depois, ele foi internado com complicações pulmonares. Sua morte deixou a todos nós com o coração apertado. O historiador Juarez Silva destacou sua presença constante nos movimentos sociais, com sua câmera e o indefectível colete de fotógrafo, às vezes com o chapéu panamá, mas sempre com o também indefectível rabo de cavalo, em sua potente motocicleta no mais puro estilo “hell´s angels”.

Essa é a imagem que vai ficar dele. O sistema bem que tentou fisgá-lo e engravatá-lo, sem sucesso, graças a Deus. Em 2011 defendeu o mestrado com a dissertação “Cidade e Loucura: espacialização da “doença mental” e o processo de desinstitucionalização psiquiátrica na cidade de Manaus”.  Na UEA, foi pró-reitor de extensão – uma área também marginal – permanecendo sempre na terceira margem. Em verdade em verdade vos digo, não se faz mais gente solar como Rogelio Casado, que vai fazer falta a todos nós, os doidinhos de Manaus, que não o esqueceremos.

P.S. – Agradeço a todos os amigos do Facebook – Elaize, Gleice, Juarez, Magela, Astrid, Simão Pessoa, Mario Adolpho e tantos outros que postaram fotos, textos e charges por mim pirateadas. Agora, vamos todos apadrinhar e amadrinhar o Juan.