Por Ribamar Bessa:
E mesmo que toda a gente / fique rindo, duvidando /destas estórias que narro, /
não me importo: vou contente / toscamente improvisando / na minha frauta de barro.
Luiz Bacellar (1928-2012), poeta do Bairro de Aparecida
A data, não esqueço. Era aniversário de minha irmã: 1° de outubro de 1962. Cururu, peixeiro ambulante, percorria as ruas da cidade com um tabuleiro vendendo seu peixe. Mala Velha, o caçula, trabalhava na Serraria Hore, Bairro de Aparecida. Os dois nem se falavam. Naquela noite, o acaso os reuniu no lupanar Curral das Éguas, também conhecido poeticamente como Flor de Abacate, situado na ponte Aroeira, na Cidade Flutuante – uma favela aquática sobre troncos com pardieiros cobertos de palha ou zinco. Cada um no seu canto. Beberam, dançaram até que Mala Velha, completamente chirrado, cantou o jingle do candidato do PTB:
– Salve Plínio, grande líder trabalhista! / O teu nome por si só é uma bandeira! / Consagrado já és como estadista, / no conceito da gente brasileeeeeira!
O que mais irritou Chico Cururu, cabo eleitoral de Paulo Neri (UDN – vixe, vixe), foi a adesão das meninas em trajes menores cantando ali, num coral improvisado. Em depoimento à Polícia, ele declarou ter sido humilhante ouvir Lizete, sua preferida, regida pelo irmão, entoar com voz de mezzo-soprano o final do jingle divulgado pelas rádios Baré e Rio-Mar, repleto de exclamações:
– Nosso povo jubiloso te saúda! / Com firmeza, energia e valor! / Porque é Plínio, Plínio mesmo e não muda! / Novamente tu serás governadooooor!
Dois Irmãos
Uma afronta. Bastante mamado e cheio da troaca, Cururu puxou a faca de escamar peixe, amoladinha, partiu pra cima e pinicou o corpo do irmão: pescoço, baço, coração. Dessa forma, acabou uma briga iniciada oito anos antes, em 1954, quando Mala Velha, petebista doente, debochara do candidato a governador Severiano Nunes (UDN), interpretando a sigla SNM – Serviço Nacional da Malária afixada nas casas fumigadas com inseticida como sendo Severiano Nunca Mais. Foi aí que tudo começou.
A eleição de 1954 quem ganhou foi Plínio Coelho – Pata Choca para os adversários, Ganso do Capitólio para os correligionários – que criou a empresa estatal de ônibus Transportamazon e arrumou para Mala Velha um emprego de motorista, de onde seria demitido por Gilberto Mestrinho no governo seguinte. Em 1962, Plínio se candidata outra vez contra a mesma UDN do Paulo Pinto Nery, acendendo as esperanças do velho cabo eleitoral e acirrando a divisão entre os irmãos.
– … porque é Prinho, Prinho mesmo e não muda…
Ele não falava Plínio. Cururu, olhando o irmão que agonizava, teria declarado cheio de ódio, segundo testemunhas oculares e auriculares:
– Tóma-te! Teu voto o Prinho não vai ter!
Não teve. Mala Velha morreu ali mesmo, dois dias antes da eleição.
Os jornais da época tentaram despolitizar a questão, alegando agravantes para o crime, já que os irmãos estariam embeiçados pela Leonor, um piteuzinho, que vendia verduras no Beco da Bosta. Invencionices. A história foi como contei, está aí o advogado Felix Valois, na época membro da Cruzadinha Infantil, que não me deixa mentir. Ou deixa?
Eis o que eu queria dizer: meio século depois, o Brasil continua infestado por cururus e malas velhas, que agem nas redes sociais e se esfaqueiam virtualmente. Patrulham o voto dos outros, como se fossem donos da verdade. Não argumentam: ofendem. Não escutam: xingam. Seguem o exemplo dos candidatos. Outro dia fui chamado de idiota no face por alguém que não conheço, só porque destaquei que Marina Silva defendia os índios e a floresta.
As patrulhas
Minha família não é diferente das demais, mas felizmente contivemos o ímpeto eleitoral dos cururus e malas velhas. A gente se ama, briga, fofoca e todo mundo se mete na vida de todo mundo. Funciona como uma tribo. As irmãs votam em Dilma, primos e alguns sobrinhos em Áecio, com tiroteios nas reuniões familiares que borbulham e fervilham. No primeiro turno, Marina teve apenas meu voto solitário. Minto. Uma prima que conhece a vida no seringal e os índios Katukina também votou nela. Houve porém um silêncio generalizado, não sei se respeitoso ou reprovador.
“Inimigos em comum” – esse foi o título de matéria da Folha de SP (17/10) assinada por Lígia Mesquita, abordando a ação dos “guerrilheiros do facebook”, o patrulhamento político, os casos de brigas entre amigos e parentes, o tom agressivo, as mentiras e o rompimento e bloqueio de amizades.

Os candidatos se lixaram para os surdos, mas meu sobrinho ouviu melhor do que todos nós os dois últimos debates entre Dilma e Aécio, talvez porque tenha sido um debate de surdos. Desencantado com a baixaria, ele nos consultou sobre o voto nulo. Mereceu o respeito das tias, petistas doentes, e das primas, aecistas convictas. Conseguiu enfrentar o patrulhamento nas redes sociais, onde se quer ganhar no grito, com “informações” que não são checadas e “argumentos” primários que crucificam quem pensa diferente, escrotizando as relações de afeto.
Conversamos via face, o sobrinho em Manaus, eu no Rio. Respeito o voto nulo dele, mas já declarei o meu. Não voto em Aécio com entusiasmo. Agora é Dilma, 13, sem entusiasmo. Ora, direis, o TSE não computa voto pela metade. Com ou sem entusiasmo, o valor é o mesmo. Não é o que pensa a patrulha que quer, além do voto, a alma da gente. Os patrulheiros são primários. Cada vez que vejo a propaganda do Aécio, reforço meu voto em Dilma. Quando ouço certos cabos eleitorais da Dilma, me dá vontade de anular o voto. Funciona de revestrés.
O PT precisa dos votos dos eleitores, sem os quais não ganha a eleição, mas precisa da crítica dura, da pressão constante, da cobrança insistente sem a qual não governa. Quem abdica da crítica, está dizendo que concorda com as alianças e entrega Dilma de bandeja como refém da tal “base aliada”. Ai, sinceramente, não existe diferença entre as duas formas de governar.
Dilma, presidente da República, tem a caneta na mão. Teria minha alma se reconhecesse todas as terras indígenas, cujas demarcações estão engavetadas. Mas isso ela não faz. Nem sequer acena. Índios e surdos estão fora do horizonte dos dois candidatos. De qualquer forma, nenhum dos dois merece que se mate ou se morra por eles. Chega de Cururu e Mala Velha!
P.S. – Vale a pena ler três artigos publicados na Folha de SP com posições diferentes: 1) Ruy Goiaba – Opinião: o inferno são os outros; 2) Luiz Eduardo Soares – Conversa de segundo turno; 3) Maria Rita Kehl – Voto contra o retrocesso.