FHC e o Clube dos Mortos Vivos

Por Sandro Vaia

O ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso é um homem de pensamento refinado e com certeza sabia o que estava fazendo quando escreveu o artigo-ensaio “O Papel da Oposição”, publicado na revista “Interesse Nacional”, mas divulgado antes pela internet.

Devia saber,principalmente, com que espécie de assombrações estava mexendo, a não ser que queiramos imputar-lhe uma espécie de ingenuidade e de inocência que não combinam bem com um homem que está fazendo 80 anos e ocupou a presidência da República por duas vezes.

Ao fazer uma análise precisa e aguda da transformação dos partidos políticos em uma espécie de “clubes congressuais” e ao tentar esquadrinhar novos horizontes onde situar o discurso oposicionista,levando em conta a emergência de novos atores sociais, FHC cutucou a onça com vara curta.

Ele ousou escrever:

“Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os “movimentos sociais” ou o “povão”, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos. Isto porque o governo “aparelhou”, cooptou com benesses e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispõe de mecanismos de concessão de benesses às massas carentes mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, além da influência que exerce na mídia com as verbas publicitárias.”

Num país onde o debate de idéias é tratado a pontapés e transformado num diz-que-diz com gosto de fanatismo de torcida organizada em arquibancada de futebol, e onde as palavras são interpretadas pela rama, não é de se estranhar que a colocação do ex-presidente fosse lida como uma conclamação a “abandonar o povão” e uma manifestação de “elitismo” e desprezo pelo destino dos mais pobres.

Inocência seria acreditar que os governistas não fossem aproveitar a digressão conceitual do ex-presidente para distorcer-lhe o sentido, e não há como estranhar que Lula – evidentemente seguido pelos áulicos – não transformasse essa análise em mais uma de suas popularíssimas interpretações propositalmente desonestas e rasteiras como a grama:

“Eu. Sinceramente. não sei o que ele quis dizer. Nós já tivemos políticos que preferiam cheiro de cavalo que o povo. Agora tem um presidente que diz que precisa não ficar atrás do povão, esquecer o povão. Eu sinceramente não sei como é que alguém estuda tanto e depois quer esquecer do povão”

E é a isso que se reduz o debate político no país,e o que é mais espantoso, com Lula sendo seguido por vários oposicionistas, que analisaram o artigo do ex-presidente com a mesma rasteirice com que os governistas se dedicaram à tarefa de distorcer o que o ex-presidente escreveu.

Com esse tipo de baixaria intelectual, distorceu-se a essência da questão proposta pelo artigo-ensaio, e perdeu-se a oportunidade de debater como é que os partidos políticos podem voltar a vocalizar os interesses de uma sociedade que se transforma a cada dia e que não encontra quem seja capaz de representá-la politicamente.

Então continuamos assim: a sociedade de um lado, e os mortos-vivos da política do outro, cuidando dos interesses do seu clube “privé”.

Sandro Vaia é jornalista. Foi repórter, redator e editor do Jornal da Tarde, diretor de Redação da revista Afinal, diretor de Informação da Agência Estado e diretor de Redação de “O Estado de S.Paulo”. É autor do livro “A Ilha Roubada”, (editora Barcarolla) sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez. E.mail: svaia@uol.com.br