FELIZ 2013, TATAITÁ!

Por Ribamar Bessa:
Os fogos que vão iluminar o céu à meia-noite, anunciando a passagem de ano, darão o sinal para criar uma situação embaraçosa numa mansão do Tarumã, em Manaus. Naquele exato momento, o doutor Messias Pimentel, 68 anos, amazonense, careca, flamenguista doente, executivo de uma multinacional, vai encarar seu cunhado, já meio bêbado, que lhe dará um abraço hipócrita, como faz todos os anos e, diante de uma plateia seleta lhe desejará, aos berros, com a voz carregada de ironia:
– Feliz 2013, Tataitá-rrrrrrrrrrr!
Em cada réveillon se repete a mesma xaropada. O cunhado, que além de chato e inconveniente é vascaíno, teima em chamá-lo por aquele maldito apelido, carregando no “r” final, enquanto os amigos presentes ouvem calados e se fecham num silêncio eloquente, fingidamente respeitoso, mas igualmente ofensivo. Alguns ensaiam até um risinho sardônico.
Já passaram mais de 60 anos desde que Messias, o Tataitá, foi alfabetizado no Grupo Escolar Cônego Azevedo, no bairro de Aparecida. Mas o apelido que ali nasceu e que ele tanto odeia, ficou impresso em sua pele como um carimbo e gravado para sempre em sua alma, como uma tatuagem indelével. Por causa dele, já lhe passou pela cabeça, ainda que fugazmente, a ideia de dar um tiro nos cornos do cunhado. “Eu ia em cana, mas haveria no mundo um torcedor a menos do Vasco” – pensou com alegria.
Capaz de causar homicídio, o incômodo apelido saiu de dentro de uma cartilha na qual Messias Pimentel estudou, um dos tantos livros que começaram a proliferar nessa época, graças à Comissão Nacional do Livro Didático criada em 1938. Anos antes, o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova havia sugerido diretrizes inovadoras para a educação nacional e priorizava o ensino público, gratuito e laico. Um dos signatários do Manifesto foi Lourenço Filho, autor de Upa, Cavalinho!, livro adotado pelo Instituto Christus do Amazonas, dirigido pelo professor Orígenes Martins.
Na década de 1950, esses livros se espalharam por todos os recantos do Brasil, mas não sabemos qual deles publicou a história do Tataitá. Mais de meio século depois, ainda traumatizado, Messias se recusa a falar e não dá o endereço da morada do Tataitá. Pode ser um daqueles livros da série Pedrinho, de autoria de Lourenço Filho, que tinham capa dura e ilustrações coloridas, ou o Infância Brasileira de Ariosto Espinheira, com o título em letras douradas.
Não importa o santo, mas o milagre. Qualquer um deles trazia textos sugestivos e incorporava narrativas indígenas, que pretendiam despertar o prazer da leitura, com ilustrações, exercícios de compreensão, estudo do vocabulário e explicações gramaticais. É dentro deste contexto que surge a história do Tataitá, origem do apelido. Quem era, afinal, esse personagem?
Sísifo tupi
Guerreiro destemido, Tataitá enfrentou Tupã, o dono do fogo, roubando-lhe as duas pedras com as quais, depois de atritadas, fez uma fogueira. Com isso, sua tribo aprendeu uma nova técnica até então desconhecida, mas Tataitá foi punido com um castigo cruel: ele tinha que transportar as águas do rio para o topo de uma montanha, usando apenas um paneiro. Porém, cada vez que erguia o paneiro mergulhado no rio, a água saía pelos buracos. Estava condenado a repetir eternamente um trabalho inútil, como o Sísifo da mitologia grega. Foi, então, que Mãe D’água, com pena, aconselhou:
– Tataitá, vai até aquela árvore alta, dá pequenos cortes no seu tronco e recolhe o sumo leitoso que dele brotará. Com este líquido, reveste o interior do cesto.
O guerreiro seguiu o conselho ao pé da letra e constatou, maravilhado, que o líquido, coagulado, havia milagrosamente impermeabilizado o paneiro. Dessa forma, conseguiu carregar a água, se livrou do castigo e descobriu que a seringueira fornecia borracha. Enquanto na narrativa tupi Tataitá não deu azar, na mitologia grega Sísifo deu e ficou carregando pedra por toda a eternidade.
Diante de narrativa tão poética, surge a questão: por que Messias sente vergonha do apelido? Tataitá não é do bem? É aqui que entra a professora Adelaide Wanderley, a tia Dedé, cuja fama de alfabetizadora havia se espalhado por Manaus e adjacências. Ela só permitia que tomasse tacacá na banca da dona Alvina aquele aluno que fosse capaz de soletrar a palavra: ta-ca-cá. Dessa forma, até os paralelepípedos da Rua Xavier de Mendonça aprendiam a ler com muita facilidade só para sentirem o jambu tremelicando nos lábios.
No entanto, tal motivação não funcionou com Messias Pimentel, aluno da tia Dedé no 2° ano A, que ficou tempos sem sentir o cheiro do tucupi, porque na hora de soletrar, lia sempre ta-ca-cá-rrr. Naquela época, o exercício diário que se fazia para avaliar as habilidades dos alunos recém-alfabetizados era justamente fazê-los ler em voz alta, na sala de aula, diante de todos os colegas. Cada aluno lia e relia diariamente o mesmo texto até adquirir total fluência na leitura, quando então passava para um novo texto.
Normalmente, esse processo durava um par de dias, no máximo uma semana com alunos mais lerdos. Com Messias durou uma eternidade, ele ficou anos lendo sempre a mesma história do Tataitá. Os colegas passaram por toda a série de quatro livros: Pedrinho, Pedrinho e seus amigos, Aventuras de Pedrinho, Leituras de Pedrinho e Maria Clara, enquanto Messias permanecia carregando água no paneiro. Os colegas entraram no Infância Brasileira I, II, III e IV e Messias continuava atolado no Tataitá, mais precisamente no Tataitá-rrrrr. Reprovado várias vezes, foi colega de três irmãs minhas, de idades diferentes.
Tucupir no tacacar
O problema não era de compreensão, Messias entendia bem o que lia. É que ele começava soletrando em silêncio, bem devagar: tê-a-tá = tá, tê-a-ta = tá, i, tê-a-tá = tá, Ta-ta-i-tá. Ficava gaguejando, meio tatibitati, um ta-ta-ta sem fim, tateando aqui, titubeando ali, até dona Adelaide exigir:
– Leia em voz alta, seu Messias.
Ele continuava gaguejando, tudo por causa do seu fascínio pelo “r”. Estava absolutamente deslumbrado com a letra sem a qual não existia nem rei, nem rainha, nem presidente, nem ditador. Vivia colocando um “r” inexistente no final de palavras como Tataitá e tacacá, acreditando talvez que, dessa forma, criava um efeito sonoro capaz de impressionar os colegas. Acionado pela professora, começava a ler, berrando e carregando nos erres:
– Tataitá-rrrrrr!
Todas as demais salas ouviam o berro. A professora corrigia uma, dez, cem vezes, mas no dia seguinte recomeçava tudo de novo. Quando ela ia avaliar a compreensão do texto e perguntava quem era o personagem principal da história, a irresistível força do “r” sobrepujava as correções da professora e Messias sapecava pela milésima vez:
– Tataitá-rrrrrr!
Sua leitura era como o trabalho de Sísifo e do próprio Tataitá antes de encontrar a Iara, porque todo o esforço feito num dia, era desfeito à noite, e no dia seguinte recomeçava do zero. Era impossível que Messias não ficasse carimbado com o apelido de Tataitá-rrrrr. Numa época em que ninguém falava em bullying, mas havia muita molecagem, ele foi vítima de todo tipo de gozação. No recreio, no pátio, na sala de aula e na saída da escola, os colegas, com as duas mãos em concha na boca, gritavam:
– Tataita-rrrrrrr, vai tomarrr tacacá-rrrrrr!
Ele se defendia bem, respondendo com raiva:
– Vai tu-rrr, tomarrrrrr nukuurrr!
Embora Messias tenha superado as dificuldades e se formado em Direito, tornando-se um profissional correto e bem remunerado, o processo de alfabetização permaneceu guardado, rancorosamente, em sua memória. Ele ficou tão traumatizado que, já grande, decidiu abolir definitivamente o “r” no final das palavras. Para ele, o novo prefeito de Manaus é o Artú, e o governador do Amazonas é o Omá.
Por isso, no dia 31 de dezembro, quando der meia-noite, ele odiará o cunhado que lhe dirá:
– Feliz 2013, Tataitá-rrrrrr!
É o que, já adiantando, também desejo ao leitor-rrrr.
P.S. Pretendia escrever sobre o lixo de Manaus, de Duque de Caxias e de outros municípios abandonados pelos prefeitos que terminam seus mandatos. Ou sobre o lixo do Senado, que troca Sarney por Renan, seis por meia dúzia. Mas acordei com o grito do Tataitá-rrrr na minha cabeça. Já conhecia a história, telefonei para minhas irmãs Gina, Helena e Dile, que foram colegas do Messias em diferentes séries e  testemunharam a agonia do Tataitárrrr. Elas me deram os detalhes, eu só fiz dar uma ligeira enfeitada.