CONVERSAS NO BANZEIRO

Por Ribamar Bessa:

 Não vou mentir: ver, ver mesmo, euzinho aqui não vi. Conto o que me contou Decroly, vulgo Fon-fon, foi ele quem viu o destacado político do grupo do José Melo (PROS, vixe!) entrando tarde da noite disfarçado de freira no comitê eleitoral do seu rival, senador Eduardo Braga (PMDB, vixe!) a quem foi hipotecar apoio. Melo e Braga são candidatos ao governo do Amazonas. O traíra, embora com o rosto encoberto por uma espécie de burca árabe, foi identificado pelo formato piramidal do seu nariz.

– Isso é uma bomba! Você jura que viu? – perguntei.
– Depende do que é “ver”. Assim de corpo presente não, mas foi como se tivesse visto. Aquele narigão é inconfundível – falou Decroly, que teve acesso às imagens filmadas por uma câmara instalada no poste em frente ao comitê do Braga, tão alta que bisbilhotava lá dentro e tão potente que filmaria até os pensamentos do deputado Sabino Castelo Branco (PTB, vixe) – se ele pensasse. Duvidei, mas Decroly jurou que queria ver sua mãe mortinha no inferno se estivesse mentindo, que só não me mostrava o filme porque ali não era o lugar apropriado.
“Ali” era o restaurante Banzeiro, na Rua Libertador, em Adrianópolis, onde almoçávamos eu, ele e o Tinoco. Não conto tudo o que ouvi sobre a briga entre bregantinos e melados com medo de ser preso, pois o juiz Márcio Rys do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas atendeu ação cautelar e mandou retirar a câmera de vigilância instalada pelo CIOPS – Centro Integrado de Operações de Segurança – na frente do “Manaus Show Clube” que abriga o comitê de campanha do Braga. Para o juiz se trata de um “reprovável procedimento de espionagem eleitoral“.
Os bregantinos
– Muita coisa, no entanto, já havia sido filmada, inclusive o traíra narigudo – disse Decroly, que é advogado. Com sua voz fanhosa – daí o apelido Fon-fon que ele detesta – discordou do juiz porque, data venia, quem não deve não teme e se os bragantinos estavam com o fiofó trancado, se borrando de medo, é porque sabiam que corria sujeira grossa lá dentro do Comitê. Por isso, a avultada multa de R$ 100 mil por dia e em espécie estabelecida pelo juiz, caso a câmara do CIOPS não fosse retirada. O tamanho da multa diz tudo sobre o valor das imagens.
Foi aí que, de pura provocação, manifestei concordar com o juiz que, com aquela medida pretendia restabelecer “a igualdade entre os candidatos“, baseado no direito romano do Paritas pirocorum que condena o princípio do “Piroca mea maioribus ut vestri est”, ou seja, a minha é maior do que a tua, como sentenciara o jurista romano Públio Caio da Cyrenaica.
Com sua voz anasalada, Decroly retrucou dizendo que retirar a câmara não era igualdade entre candidatos, igualdade era o Braga matar a cobra e mostrar o pau, colocando também uma câmara, também vermelha, em frente ao comitê do Melo para não privar os eleitores da informação e, sobretudo, das fofocas. O que, na verdade, já havia sido feito de forma camuflada.
– Foi ou não foi, Tinoco? – perguntava Decroly depois de cada fala.
Descobri, então, o motivo da presença do Tinoco, funcionário da Seplan, trazido a tiracolo ao restaurante por Decroly. Ele estava ali para confirmar tudo, mas só balançava afirmativamente a cabeça, pois sua boca estava sempre cheia, ocupada em estraçalhar o filé de pirarucu empanado com farinha do Uarini, acompanhado de baião de dois, depois de ter saboreado na entrada a saúva na mandioquinha, especialidade da casa.
As câmaras do José Melo, atual governador, pretendiam – continuou Decroly – encontrar indícios daquilo que levou o Supremo Tribunal Federal a abrir inquérito para investigar o senador Eduardo Braga suspeito, quando o governador era ele, de formação de quadrilha, fraude em licitação e peculato, no caso da desapropriação de um terreno para construção de casas populares. Foi ou não foi, Tinoco?
Os melados
Na hora em que Tinoco foi fazer xixi, Decroly contou que, em represália, Dudu Braga havia instalado uma câmara clandestina para bisbilhotar o comitê de José Melo, na Rua Almir Pedreira, em frente a Graftech, no bairro de Petrópolis, na esperança de verificar o destino de milhares de ovos da merenda escolar, no valor de R$ 6 milhões, o equivalente a 215 caminhões de alimentos que, segundo o então deputado Nicolau, tinham ido parar, em 1996, nos bolsos do, na época, Secretário de Educação, que passou a ser conhecido como José Melo Merenda. Foi ou não foi, Tinoco?
Tinoco, que acabava de chegar do banheiro, confirmou tudo, embora nada tivesse ouvido, pensando que o assunto era a agressão, no domingo passado, do destemperado Eduardo Braga, que deu uma gravata em Joel Reis da Silva, de 24 anos, fotógrafo amador e deficiente físico, que fotografava a carreata no município de Maraã. A máquina foi-lhe arrancada do pescoço pelo “Bira”, motorista do senador, com ajuda do “Batatinha”, seu segurança e do Sabino Podrão, suspeitando que Joel documentava servidores públicos que trabalhavam para Braga em horário de expediente.
Decroly disse que o paraense Eduardo Braga, 54 anos, e o eirunepeense José Melo, 68 anos, são – como diria Catão, o Velho – “ejusdem farinae mandiocae paneirorum”, ou seja, é tudo farinha do mesmo paneiro. Eu estou mentindo, Tinoco?
Repito: não vi o político vestido de freira, nem em carne e osso, nem em imagens. Não vou mentir, embora goste, de vez em quando, de uma mentirinha. Mas acredito no Decroly, que aliás nem Decroly é. Sua mãe, a Hilda, foi aluna do Carlos Eduardo, professor do curso pedagógico no IEA, nos anos 1960, em cujas aulas só dava Decroly. Era Decroly pra lá, Decroly pra cá. Ela jurou que se tivesse um filho, ele se chamaria Ovídio Decroly em homenagem ao médico belga que revolucionou a pedagogia. O menino nasceu, mas na hora de registrá-lo, o pai, vaidoso, preferiu Inezildo Junior. No entanto, para a mãe ele é e será para sempre Decroly.
Ora, se o tacacá mais delicioso do Amazonas é feito por um japonês – tomei algumas cuias no Ishiba, lá no Eldorado – por que o Decroly Fon-fon, mesmo com nome falso, não pode ter contado a verdade? Bem disse Aldisio Filgueiras, nosso amado poeta: às vezes, a gente precisa mentir para dizer a verdade. É ou não é, Tinoco?
P.S.1- O amazonense que sai do interior para a cidade sempre fica com um pé lá e outro aqui, criando o chamado “circuito do agrado” no contexto do êxodo rural, que é um processo gradual e lento. Quem estiver interessado em discutir as fronteiras móveis entre cidade e interior deve ler Riquezas materiais e imateriais: relações cidade e campo na Amazônia, dissertação de Maurício Adu Schwade defendida em 29 de julho no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da UFAM. Da banca fizeram parte José Aldemir de Oliveira (orientador), Alfredo Wagner Berno de Almeida e este locutor que vos fala, que depois da defesa aproveitou para almoçar com o Decroly.
P.S. 2 – Mauricio Adu é filho do Egydio Schwade e da saudosa Dorothy (in memoriam), militantes da causa indígena.