Por Ribamar Bessa:
Eu sei… eu sei, desocupado leitor – quero dizer, ocupado folião – que em pleno reinado do Momo, ninguém pode silenciar cuícas, surdos, reco-recos, pandeiros e tamborins só para que penses nela. Ninguém tem o direito de exigir que interrompas o carnaval para dedicares a ela alguns minutos da tua precária, mas preciosa existência. Eu sei, mas ainda assim me arrisco a te fazer essa súplica, certo de que serás solidário quando souberes que ela, Laizinha, está comendo a mandioca que o capiroto ralou.
Sucede que em minhas caminhadas matinais, dentro de um parque arborizado, encontro aqui e ali figuras que costumam conversar com a própria solidão. Um deles é um senhor mais ou menos da minha idade – sejamos francos: um velho – que enquanto caminha vai murmurando, bem baixinho, frases desconexas. Mas ontem ele estava com a voz tão alterada, que um gari, por trás dele, rodou o dedo indicador em volta da têmpora pra me avisar:
– O cara é tantã, tem um parafuso frouxo!
Será? Curioso, decidi segui-lo de perto, com simpatia, talvez por causa de sua cara de portuga, parecida com a do ex-prefeito de Manaus, Serafim Correa (PSB). Tive de diminuir o ritmo dos meus passos para não ultrapassá-lo. Depois de alguns minutos, percebi que o cabra não estava falando sozinho, nem pensando em voz alta, que ele conversava com um interlocutor, invisível para os demais e meio surdo, pois embora lhe desse um tratamento de respeito e reverência, de vez em quando os sussurros se transformavam em gritos. Na realidade, o cabra falava com Deus.
Não costuma faiá
É isso aí. O cabra rezava. Rezava em voz alta, na frente de todo mundo, em ambiente não apropriado, por isso parecia lelé da cuca. Rezar em voz alta dentro de uma igreja, tudo bem, mas no meio da rua? Parece estranho para alguém, como esse que digita essas mal traçadas, que só sabe mostrar seu olhar, seu olhar, seu olhar. E foi aqui que, sem querer, conheci a Laizinha. Bem, conhecer é uma forma de falar. Digamos, que tomei conhecimento da existência dela.
O rezador desfilava uma série de nomes, como uma ladainha. A família dele era grande. Mas eu me detive na primeira frase, que nada tinha de desconexo:
– Pai, quero te pedir pela felicidade da minha família, especialmente pela Laizinha que não precisava estar passando por tanto sofrimento. Te peço, Pai, ajuda a Laizinha a encontrar seu caminho…
Ele rezava em voz alta, com fé, com convicção de quem sabe que “a fé não costuma faiá”. Sua voz, trêmula, indicava que estava sofrendo no momento em que registrava o pedido. Quem era, afinal, Laizinha? Segui-o ainda, discretamente, durante algum tempo, intrigado, curioso, mas ele colocava outras pessoas no pacote de oração. Retornava à Laizinha, mas sempre com as mesmas palavras, sem explicitar que sofrimento era aquele.
Na falta de dados, dei asas à imaginação. A única coisa que sabia é que Laizinha, evidentemente, era uma mulher, que sofria, que estava perdida e que precisava encontrar seu caminho. Mas qual era sua faixa etária? O diminutivo podia indicar que podia ser uma criança, talvez a neta dele, que estava com algum tipo de doença grave. Mas se fosse isso, ele não pediria para ela “encontrar seu caminho”.
Reza cura
Laizinha podia ser, então, uma adolescente namoradora, como minhas sobrinhas Vôve e Malu, que teriam sofrido alguma desilusão amorosa. “Não precisava passar por isso” se tivesse “ficado” com outro namorado, mais atencioso. “Encontrar o seu caminho” significava se livrar do atual pilantra. Não subestimemos a dor de corno, de quem sofre por amor.
Mas Laizinha pode ser também uma “coroa”, o diminutivo não quer dizer nada. A Dile, minha irmã, tinha uma amiga no bairro de Aparecida, dona Alaíde, que morreu, já velha, com o nome de Laizinha. Então, o velho com a cara do Serafim podia estar rezando por uma irmã dele, Laizinha, que ficou viúva e “não precisava passar por isso”. O pedido para “encontrar o seu caminho”, talvez estivesse sinalizando para que ela fizesse como minha prima Rose que, depois de tirar o luto de viúva, pintou o cabelo de louro e jogou charme pra cima do Djhones. Sem sucesso, diga-se de passagem.
Enfim, Laizinha pode ser criança, adolescente, adulta ou velha, mas o certo é que está passando momentos difíceis – doença, abandono, humilhação, desemprego, depressão. Não importa. Juro que – brincadeiras à parte – fiquei enternecido com o sofrimento do velho e da Laizinha. Por isso, te peço, leitor (a), reza pela Laizinha, seja qual for o sofrimento dela. Não custa nada.
O psicanalista italiano Contardo Caligaris, que tem uma coluna semanal na Folha de São Paulo, escreveu há alguns anos um artigo no qual afirma que, embora seja ateu, está convencido de que a reza cura. Ele se apoia em artigos científicos do “British Medical Journal“, que comprovam os efeitos positivos da reza na cura de diversas doenças.
– “Documenta-se que o doente encontra benefícios (quanto ao andamento de sua enfermidade) no ato de rezar ou na consciência de que seus próximos rezam por ele. Até aqui, tudo bem: o paciente acharia assim uma paz de espírito que melhora sua evolução. A coisa se complica: às vezes, as pesquisas mostram que a prece traz benefícios mesmo quando alguém reza por um doente sem que ele próprio saiba disso. Como explicar esses casos?”
Por via das dúvidas, interrompe, ocupado folião, teu lazer dionisíaco, e reza pela Laizinha. Aproveita e coloca no pacote a vesícula da Chachá que acaba de ser operada. Até meu amigo Tarcisio Lage, um ateu emperdenido, é capaz de rezar, lembrando da dona Feliciana, sua santa mãe, uma rezadeira de Abaeté, no interior de Minas Gerais.