A QUESTÃO DO TRANSPORTE COLETIVO (IV) – O novo marco regulatório

O Seminário sobre a mobilidade urbana em Manaus.

O Governo Federal, através do Ministério das Cidades, avançou na realização de audiências públicas Brasil afora sobre o projeto do marco regulatório da mobilidade urbana sob a coordenação do José Carlos Xavier, inclusive em Manaus e meses depois o próprio Lula anunciou aos prefeitos brasileiros no Palácio do Planalto o encaminhamento do projeto ao Congresso Nacional.

Lula anunciando aos prefeitos o projeto do marco regulatório da mobilidade urbana.

A Exposição de Motivos é o melhor e mais completo diagnóstico sobre transporte coletivo no Brasil. Destaco alguns trechos:

“Pesquisas recentes indicaram que as populações de baixa renda, principalmente das metrópoles brasileiras, por falta de condições de deslocamento, enfrentam sérias dificuldades para acesso a escolas, hospitais e demais serviços que as cidades oferecem, bem como a oportunidades de trabalho e lazer.

O transporte coletivo, um serviço público essencial, conforme define a Constituição Federal, não atende adequadamente àquelas populações, seja em razão das altas tarifas, incompatíveis com os rendimentos dos cidadãos, ou pela inadequação da oferta dos serviços, principalmente nas periferias das cidades. Tais situações contribuem para a perpetuação da pobreza urbana, da segregação residencial e da exclusão social.

Paralelo a isso, os congestionamentos, a poluição ambiental e os acidentes de trânsito nas grandes cidades acarretam significativos custos para toda a sociedade. Pesquisas divulgadas em 1998 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, por exemplo, indicaram que em apenas dez capitais se perdeu mais de 240 milhões de horas de trabalho produtivo devido aos congestionamentos de trânsito, o que impacta negativamente na eficiência da economia e na competitividade daquelas cidades. Os engarrafamentos de veículos são também responsáveis pelo consumo excessivo de energia não-renovável e pela emissão de poluentes no ar. Por sua vez, os custos dos acidentes de trânsito foram estimados em mais de R$ 5 bilhões em 2002, apenas nas áreas urbanas.

Além dos problemas da desigualdade do acesso ao transporte coletivo urbano, bem como às oportunidades e serviços municipais, existe também a questão da iniqüidade no uso do espaço destinado à circulação de pessoas e bens. Segundo dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), aproximadamente 20% da população das grandes cidades, detentora dos meios motorizados privados de transporte (de automóveis, sobretudo), ocupa quase 80% das vias públicas.

O transporte coletivo, em que se concentra o transporte motorizado da população urbana brasileira, vive um processo de declínio. Entre 1995 e 2003, a demanda pelos ônibus urbanos, responsáveis por mais de 90% do atendimento da demanda total de transporte coletivo no Brasil, caiu cerca de 40% em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Salvador, Fortaleza e Goiânia.

O quadro institucional do transporte coletivo é preocupante na maioria dos municípios brasileiros. Quase 100% dos serviços de ônibus urbanos são operados pela iniciativa privada sob contratos precários ou vencidos. Foram poucas as cidades que realizaram concorrências públicas sob a atual legislação de concessão e permissão de serviços públicos, num evidente descumprimento do art. 175 da Constituição Federal.

Ressalte-se que os metrôs e trens urbanos, presentes em algumas cidades, são prestados por empresas estatais, federais e estaduais – com exceção do Rio de Janeiro, cuja operação do metrô e trem foi privatizada.

Some-se a isso a fragilidade da gestão pública local e a adoção de mecanismos regulatórios obsoletos que não incentivam a eficiência e o bom desempenho dos serviços – com reflexos negativos na qualidade e no preço das tarifas. De acordo com avaliação da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, em 2005 a tarifa de ônibus urbano foi, dentre o grupo dos preços administrados, um dos itens que mais pressionou a inflação medida pelo IPCA nos últimos 6 anos, atrás apenas da energia elétrica. Essas falhas criaram oportunidades para a entrada e consolidação do transporte informal, por meio de kombis, vans e motocicletas, a partir da segunda metade dos anos 1990.

As condições de financiamento dos transportes urbanos, do mesmo modo, não são nada favoráveis. A operação do transporte coletivo por ônibus é custeada exclusivamente pela receita tarifária, com exceção do município de São Paulo, e a operação dos metrôs e trens é subsidiada pelos estados ou governo federal. Os orçamentos municipais financiam a infra-estrutura viária, cujo uso é compartilhado com os automóveis, motocicletas e veículos de carga.

Porém, devido aos congestionamentos crescentes, a ampliação do sistema viário acaba por drenar a maior parte dos recursos disponíveis, em detrimento do transporte coletivo. Paradoxalmente, a priorização do transporte coletivo nas vias (por meio de faixas, corredores ou pistas exclusivas) para a redução de custos e o aumento da velocidade operacional dos veículos, geralmente, não é adotada.

Percebe-se, assim, o ciclo vicioso em que se encontra a mobilidade urbana nas cidades brasileiras. O uso crescente do transporte individual motorizado e a falta de planejamento e controle do uso do solo urbano provocam o espraiamento das cidades com a dispersão das atividades no território e a expulsão das populações de baixa renda para as periferias. Isso aumenta as distâncias percorridas, as necessidades de deslocamentos e, conseqüentemente, os custos da provisão dos serviços de transporte coletivo.

A oferta inadequada de transporte coletivo estimula o uso do transporte individual, que aumenta os níveis de poluição ambiental e dos congestionamentos de trânsito, os quais, por sua vez, drenam mais recursos para a ampliação e construção de vias para o transporte individual motorizado, realimentando o ciclo.

Os custos ambientais e socioeconômicos de tal padrão de crescimento urbano são inaceitáveis para uma sociedade que se pretende justa e sustentável. Nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas as condições de mobilidade se tornam ainda mais graves, devido aos conflitos institucionais entre municípios e destes com os estados. Prevalece visão fragmentada acerca do sistema de mobilidade, onde cada modo ou serviço de transporte, sob jurisdição de cada governo (municipal, estadual ou federal) é tratado de maneira isolada.

A concorrência e a sobreposição de serviços entre ônibus, trens e metrôs, por exemplo, acabam onerando os usuários e sobrecarregando a infra-estrutura viária. Evidencia-se, dessa maneira, a necessidade da coordenação e articulação da gestão e da prestação de serviços sob a responsabilidade dos diferentes entes num mesmo território, sob diretrizes nacionais.

Mais de 80% da população brasileira vive nas cidades. Em menos de 10% delas concentra-se mais da metade da população e são produzidos mais de 2/3 da riqueza nacional. Na ausência de políticas públicas efetivas nessa área, o desejável crescimento econômico será comprometido pelos maiores níveis de congestionamento, poluição e acidentes, significando maiores custos econômicos, ambientais e sociais. O desafio do crescimento sustentável passa, portanto, por uma política de mobilidade urbana integrada com a de desenvolvimento urbano e socioeconômico.

Desde a segunda metade dos anos 80 inexiste uma política nacional para essa área. Entende-se que tal política é condição necessária para o desenvolvimento nacional, onde cada vez mais a qualidade de vida da população, a sustentabilidade ambiental e a eficiência da economia das cidades encontram-se comprometidas pelos problemas de mobilidade de pessoas e bens.”