A PIROCA É NOSSA

Por  Ribamar Bessa:

Com todo respeito, que me desculpem os ouvidos pudibundos, mas “a piroca é nossa”. É. É isso mesmo que vocês ouviram. Quem afirma não sou eu, mas o deputado Wanderley Dallas (PMDB-vixe), autor do projeto nº 341/2012, ora em tramitação na Assembleia Legislativa, que eleva o vocabulário do português regional à categoria de patrimônio cultural imaterial do Amazonas. Ele destaca o tombamento, entre outras, das palavras piroca, xibiu, fofobira, pinguelo, baitola, toba, pimba, cabaço e furunfar.

A lista pode ser enriquecida se for consultada a minha desbocada amiga Chachá ou, modéstia à parte, este próprio locutor que vos fala. Em sua tese de doutorado defendida na Sorbonne, Chachá sustenta que as palavras estão todas relacionadas, umas não existem sem as outras. Dessa forma sem fofobira, a pimba é inútil e ninguém furunfa, só o cabaço sobrevive. Os paraenses invejosos ameaçam, no entanto, de entrar no Supremo Tribunal Federal com uma liminar, fundamentada no princípio do “periculum in mora”, alegando que  a piroca e demais verbetes pertencem ao Pará e é ai que mora o perigo.
Quase todas as palavras consideradas patrimônio cultural do Amazonas pelo nobre deputado são originárias do Nheengatu – a língua geral amazônica – outrora falada em todo o Estado do Grão-Pará, mas hoje refugiada em solo amazonense. Elas estão dicionarizadas no “Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português” elaborado por E. Stradelli (1929). Lá consta o verbete Piroca com o significado de “pelado, depenado, descascado” (pg. 460).
É impressionante como uma simples palavra mexeu com os brios amazônidas e desencadeou um movimento regional tipo aquele de porte nacional – “o petróleo é nosso” – que incendiou o Brasil nos anos 1950, dando origem à criação da Petrobrás.
Caso o projeto seja aprovado no sucesso da campanha “a piroca é nossa”, amazonenses e paraenses terão de se submeter à Constituição do Estado do Amazonas, cujo artigo 207 determina que “o poder público deve proteger o patrimônio cultural por meio do inventário, registro, vigilância e tombamento“. Ou seja, como parte do patrimônio cultural estadual, os verbetes devem ser obrigatoriamente cadastrados e protegidos.
Pirocabrás
Daí surge o xis do problema: quem é que vai cadastrar, inventariar e fiscalizar a piroca e demais verbetes tombados? O Amazonas? O Pará? Através de quais órgãos? Essa é a questão que trazemos para o debate. O deputado Dallas não diz se tais tarefas serão executadas por uma espécie de Pirocabrás para a qual o deputado Belão Lins já tem até indicação de nomes do diretor e de 32 assessores, todos eles da sua família, disputando os cargos em comissão com os inúmeros Braga da cota do Roubério Braga, o Berinho, sempiterno secretário estadual de Cultura.
Suponhamos, ou melhor supunhetemos, que enquanto não existir a Pirocabrás, caiba ao Conselho Estadual de Defesa do Patrimônio Histórico do Amazonas (CEDEFA), de acordo com o art. 14 da lei que o criou, fazer “o arrolamento dos bens considerados integrantes do Patrimônio Histórico” em um dos livros criados para esse fim. Aliás, “arrolamento” já é palavra digna de tombamento. Quando os bens estaduais forem arrolados, o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – poderá incluir os verbetes regionais também como patrimônio nacional.
Já na qualidade de patrimônio nacional, o Brasil pode apresentar à UNESCO a candidatura das palavras amazônicas como patrimônio da humanidade, o que será “le jour de gloire” da fofobira e demais verbetes, mas retirará da Amazônia o controle sobre o processo de patrimonialização. É que no contato com a língua francesa, as palavras serão inevitavelmente afrancesadas, aparecendo como “fofobirrá” ou “pirrocá”.
O processo traz, porém, algumas vantagens. Por exemplo, o secretário Berinho fica impedido de transferir a pirrocá e outros itens lexicais para a Fundação Lourenço Braga, de sua família, porque o art. 18 da Lei Estadual determina que a preferência é do estado do Amazonas e que “o direito de preferência não impede o proprietário de gravar o estado do bem tombado com ônus real” (atenção revisor, cuidado, é ônus mesmo, com “o”).
O tombamento do bem tem o objetivo declarado de valorizar o falar regional, mas isso já foi feito com muita competência e sem ônus real no dicionário de “Amazonês – Termos Usados no Amazonas” de autoria do linguista Sérgio Freire, que vem a ser primo do meu sobrinho “Pão Molhado”. Ou pelo cantor Nicolas Júnior, que além da música “Amazonês”, compôs outras canções enraizadas na variedade do português local.
Fofobira
–  A intenção do projeto é boa, mas a forma foi equivocada – diz uma sobrinha minha que entende do riscado, porque é doutora no assunto. Cabe, porém, perguntar: por que é necessário proteger a piroca, a fofobira e outros verbetes? São palavras ameaçadas? São práticas em desuso? Na sua justificativa o projeto não identifica quem as ameaça  e porque é necessário protegê-las.
O debate no parlamento e na mídia no lugar de se centrar na questão do patrimônio cultural e da memória regional descambou para o campo moralista. O deputado Orlando Cidade (PTN, vixe-vixe) da Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCRJ) ficou escandalizado com a fofobirice do autor e,  por isso, defendeu o veto do projeto.
Outro deputado, o doutor Gomes (PSD, vixe, vixe), presidente da Comissão de Educação, também considerou o projeto imoral. Chocado com a fofobira, adiantou seu veto: “Vou me pautar nos conceitos de família, nos conceitos estritamente da ética. Darei parecer contrário a qualquer proposta que venha ferir a ordem, que venha constranger o parlamento“.
O curioso é que não haveria família se não existisse aquilo que as palavras mencionadas estão nomeando. Pensar que toda essa confusão teve origem num trauma de infância sofrido por Wanderley Dallas talvez explique o destaque dado a palavras consideradas “chulas” pelos moralistas de plantão, atacados por libidose cerebral. Nascido em Sobral, no Ceará, em 1959, ele migrou aos 14 anos para Manaus. Seu nome deveria ser Severino Quixeramobim Dias, mas na hora de batizá-lo o oficiante – um padre norte-americano – resolveu homenagear os Estados Unidos com os nomes Wanderley e Dallas, o que foi acatado por seu pai, o agricultor Jaime Dias.
Talvez por isso Wanderley Dallas Days abandonaria mais tarde o catolicismo. Em 1980, “aceitou Cristo como seu Salvador” e logo depois, como radialista na RBN, cursou teologia no Instituto Bíblico da Assembleia de Deus: “Ao longo de sua vida cristã já distribuiu mais de 80 mil Bíblias” – informa o texto de seu Gabinete. O deputado compõe a bancada evangélica e só no primeiro trimestre de 2015 já apresentou 25 projetos, entre os quais o que institui o Dia do Levita – aquele que domina a arte do louvor – que ficou conhecido também como o Dia do Puxa-Saco.
Com tais credenciais, o deputado que está em seu quinto mandato e foi um dos mais votados, num oportunismo deslavado manifestou preocupação com itens importantes da cultura amazonense. Vários projetos de sua autoria pretendem transformar em patrimônio imaterial as festas do pirarucu, do boto, da cerâmica e até da desova da tartaruga.
Parece que agora, para escandalizar ainda mais o colega Orlando Cidade, Dallas vai lançar a campanha “a fofobira é nossa e ninguém tasca”. Fofobira é um dos carros-chefe registrado na lista do próprio Wanderley Dallas, mas consta  também com outra grafia – popopira – no dicionário de Nheengatu de Stradelli, língua que não tem sons correspondentes às grafias de “f” e “b”. Em amazonês, fofobira significa “coceira na vagina”.
P.S. 1 – Para entender melhor o assunto, além da obra citada de Sérgio Freire em sua segunda edição, recomendamos duas teses: a primeira é deste locutor que vos fala: “Rio Babel -A história das línguas na Amazônia“, Rio, Eduerj, 2012 (2ª edição). A segunda, de autoria de Charufe Nasser, foi defendida na França com o seguinte título: Le parler de l’Amazonie: dévergondage et  libertinage, ça rime avec sacanage (ainda inédito).
P.S. 2 – Esse Beto Richa (PSDB vixe-vixe), hein, o rei da fuleiragem: quem diria, espancador de professores!