A MULHER NOS JORNAIS DO AMAZONAS:QUEM ERA A IA?

Por Ribamar Bessa:

Na cidade de Manaus, em 1912, circulava de mão em mão por becos e vielas do bairro dos Tocos, hoje Aparecida, um pequeno jornal manuscrito – o Raio – escrito com letra de garrancho e linguagem chula, numa ortografia que feria a norma padrão. Suas páginas trovejavam ameaças anônimas a moças namoradoras flagradas em suas intimidades amorosas dentro de suas casas que, infelizmente, não tinham para-raios. O jornal bisbilhotava, fofocava, fazia mexericos:
“O Vicente é muito besta cachorro sem vergonha. FALA-SE PORHAI que o VC esta com um namoro cabuloso com a IA e está allegre porque ell’a vem hoje aqui em casa cuidado se vosser continuar eu publico seu nome” (Raio, Manaus, 08 dez. 1912).
Outros jornais não hesitaram em publicar nomes e, embora cheios de pecados, atiraram a primeira pedra contra as madalenas de manaus. Um deles, em nota editorial, exigia “que se proíbam essas marafonas de andarem passeando e de morarem em ruas freqüentadas por famílias” (O Martello, nº 4. Manaus, 13 ago. 1911). Outro pregava a solução final, sugerindo “como medida sanitária” que fossem “depositadas ao forno crematório as syphiliticas para a salvação da mocidade esperançosa”. Identificava as prostitutas que deviam ser eliminadas:
“Noemia peruana, Rosa da pensão Tartaruga, Elvira cega, Ignês cegueta, Xandú, Chica faz tudo, Sarah do buraco, Chica vassoura, Julieta c. de saúba, Júlia pagé, Benedicta Prado, Maroca suspiro, Chica ventania, Maria do Carmo, Celeste do ex-café Carioca” (A Marreta, nº 2. Manaus, 8 abr. 1917). No caso da Julieta, o “c” não foi seguido pelo “u”, mas por um ponto para que a grafia do dito cujo ou cujo dito não chocasse as famílias amazonenses.
Quem dá mais
Numa coluna intitulada “Leilões”, com tratamento desrespeitoso,o mesmo jornal indica o preço delas: “Pelo agente Fanchini, foram vendidas em leilão, as ratuínas, catraias e esbrogues abaixo discriminadas: Barata descascada 1$700; Peito de aço 1$600; Rosa Tartaruga 1$550; Maria dos Prazeres 1$400; Maria Biju 1$350; Bucho quebrado 1$200; Adélia garage 1$150; Íris pescoço de ganso 1$100; Áurea 1$000” ((A Marreta, nº 2, idem)
Essa é uma pequena amostra desse tipo de “órgão crítico e recreativo“, de circulação e tiragem modestas, mas exitosas, já que proliferaram dezenas deles com nomes sugestivos como A Farpa, O Coió, A Lanceta, A Marreta, Matraca, Pimenta, Tezoura, Cricri, O Chicote, O Esfola, Martello, O Pau, O Mucuim, O Perequeté, KCT, encontrados nos arquivos pela historiadora Luiza Ugarte Pinheiro, professora da Universidade Federal do Amazonas, cuja tese de doutorado sairá em breve no livro Folhas do Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920).
Trata-se de uma das pesquisas mais completas já feitas sobre a história da imprensa no Amazonas, com consultas a fontes até então desconhecidas e análise fina e acurada dos dados, além de abrir largas avenidas para serem trilhadas por futuros estudos. Seu último capítulo – A mulher no periodismo – combina de forma inovadora três questões: a imagem da mulher nos jornais do Amazonas, a mulher leitora e o nascimento da imprensa feminina. “Chega a ser inquietante” – escreve a autora – “o descaso com o tema da presença feminina, que não foi sequer mencionado pela historiografia local”.
Os jornais, que apontam a emancipação feminina como um dos males dos “tempos modernos”, abrem espaço para as mulheres leitoras, mas elas são vinculadas preconceituosamente a assuntos triviais e fúteis do cotidiano e consideradas incapazes de compreender política, economia, literatura e ciência.
Cor de rosa
Circunscritas ao espaço da leitura, são assediadas pela imprensa machista que busca ganhar o público feminino de leitoras, em plena expansão no início do século XX. Elas estavam excluídas do processo de produção de jornais, mas começaram a aparecer – nos conta Luíza Pinheiro – em algumas seções como “cartas das leitoras”, nas páginas literárias e de variedades e com a publicação aqui e ali de poemas, crônicas e contos.
Numa sociedade sem tradição de leitura, os pequenos jornais, incluindo a imprensa feminina, recorrem à linguagem visual reproduzindo uma série de ilustrações, com charges, caricaturas, desenhos, tiras cômicas, que aparecem como reforço do texto.
A autora registra o aparecimento, em 1884, em Manaus, do primeiro jornal produzido inteiramente por mulheres – o Abolicionista do Amazonas – que não por acaso luta solidariamente pela emancipação do reduzido número de escravos na Província. Mas o fenômeno não ficou restrito à capital. Codajás, pequena vila do Solimões, com 700 habitantes, cultivou em 1897 A Rosa, cujo número 4 foi encontrado pela autora no acervo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Apresentava-se como “Órgão do Partido Cor de Rosa”, era todo manuscrito, com caligrafia exemplar.
A mesma Codajás veria esvoaçar, anos depois, outro jornal feminino – Borboleta – cujo primeiro número data de 11 de abril de 1909. Outros títulos se acrescentam à lista como o “Amôr – mimoso jornalzinho das alumnas da nossa Escola Normal”, fundado em 1909, que conseguiu se manter por mais de um ano. O mérito dessa imprensa era expressar a opinião das mulheres numa sociedade em que a palavra pública era atributo exclusivo dos homens, além de traduzir sensações proibidas acobertadas pelo anonimato garantido pelo fato de ser manuscrito – escreve Luíza.
Depois de analisar o rico material encontrado, a autora concluiu com propriedade: “A presença das mulheres nos jornais do Amazonas tendeu a refletir o desconforto com que uma sociedade que se queria moderna e atualizada com o mundo europeizado burguês, lida com os limites de sua capacidade em assimilar certas facetas dessa modernidade alardeada”.
Namoros cabulosos
Na sua pesquisa, a historiadora consultou cerca de duzentos títulos de jornais, destacando os mais representativos. Trabalhou com o acervo do IGHA e da Biblioteca Pública Estadual, além dos jornais microfilmados pelo “Plano Nacional de Periódicos Brasileiros” da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Acabou produzindo o embrião de um guia de fontes para a história da imprensa no Amazonas, comprovando a relevância do jornal como fonte para a pesquisa histórica.
Muitas perguntas são respondidas pelo livro, que tive o privilégio de ler antes de publicado, mas apenas uma permanece sem resposta. Nascido e criado em Aparecida, morro de curiosidade para saber se as fontes dão pistas sobre os descendentes da IA. A autora, que morou no bairro, calou discretamente. Nossa vizinha Leonor, porém, me contou que dona Alvina Tacacazeira lhe teria revelado quem são os bisnetos do V.C. que, em 1912, deu uns amassos na IA. Que falta faz um Raio para nos contar sobre “namoros cabulosos”!   
P.S. 1- No Dia Internacional da Mulher em que se celebra as lutas femininas, o Taquiprati pede desculpas póstumas, em nome da imprensa amazonense, à Julieta C. de saúba e suas amigas pelo tratamento sórdido e injurioso que receberam. Rende homenagem à autora, Luiza Pinheiro, pela sua condição de mulher e pela sua inteligência, extensiva às minhas nove irmãs – Glória, Regina, Helena, Ângela (que hoje completa 70 anos), Stella, Aparecida, Celeste, Elisa e Céu, pelas lições de vida que me deram, contribuindo para que eu procure incorporar o olhar feminino na minha visão de mundo.

P.S. 2 – Todas as informações e todas as ilustrações aqui apresentadas foram retiradas do livro de Luiza que não é responsável por eventuais erros de transcrição, nem pela seleção que fizemos dos documentos por ela consultados.