A HOMOFOBIA: NARCISO ATRAVÉS DOS ESPELHOS

“Ele diz com todas as letras: / É preciso persistência / Na travessia do grande rio”

(Narciso Lobo)

Ele já estava morto, mas em mim continuava vivo. Só muitos anos depois soube que Narciso havia atravessado para a outra margem do grande rio. Uma saudade intensa me faz ansiar por compartilhar sua memória com todos os amigos. Quero homenageá-lo neste ano de 2018 que começa.

Quem me mandou essa mensagem, de Madri, em espanhol, foi o sociólogo Emílio Gómez Ceto, educador social e militante do movimento contra a homofobia, que me localizou nas redes sociais graças ao meu artigo publicado no Diário do Amazonas, em 2009, que ele só leu anos depois e foi aí que soube da morte de Narciso Júlio Freire Lobo(1949-2009),professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Conta como foi:

–  Preparava minha viagem ao Brasil, em 2016. Tentei localizar Narciso. Queria revê-lo. Fiquei arrasado ao saber pela internet da morte do amigo que eu conhecera, em 1990, em sua excursão pela Europa, quando flanamos juntos pelas ruas de Madri, parando nos bares, aqui e ali, para um café. Conversamos sobre cultura, Manaus, Amazônia, situação política, PT. Uma conversa puxava outra: defesa dos índios, direitos dos gays, diversidade, tolerância. Recordo que ao discutirmos os partidos de esquerda, ele me deu de presente um broche com a estrela vermelha, que guardo até hoje.

Respondi a mensagem de Emílio, informando-o que eu havia convivido de perto com Narciso, no seu retorno a Manaus, depois que concluiu, em 1977, o Curso de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Chamei-o para o Porantim, um jornal em defesa dos índios, do qual eu era editor, onde ele atuou com entusiasmo, trazendo sua experiência adquirida em outros jornais do Rio e São Paulo. No seu concurso para professor da Universidade do Amazonas, eu estava na banca. Militamos juntos na Associação de Docentes. Ele não havia ainda escrito seus livros sobre cinema.

– Ah, nós falamos muito sobre cinema, fomos juntos ao Cine Doré, em Madri. Narciso viajou a Paris e dez dias depois voltou à Espanha. Com muito amor e entrega, ele me deu de presente exemplares de seus livros e doou outros para a biblioteca da Filmoteca Nacional, cujo arquivo havíamos visitado juntos. Finalmente, retornou ao Brasil, deixando muitas saudades. De vez em quando me enviava postais, com palavras que muito me enterneciam – escreveu Emilio.

Na correspondência mantida com Narciso estão incluídas também dedicatórias dos livros, entre eles, “Hoje tem Guarany” e “No rastro de Silvino Santos”, em coautoria com Selda Valle da Costa, parceira de tantas viagens. Foi na USP que Narciso cursou mestrado em Cinema e doutorado em Comunicação, publicando “A tônica da descontinuidade: cinema e política em Manaus nos anos 60”. Deixou, além disso, poemas e capítulos de livros e artigos sobre suas três paixões: cinema, política e Manaus, assuntos das conversas com o amigo espanhol que relata:

– Devido à distância e ao tempo, perdemos o contato. No entanto, sempre continuei pensando nele, sentindo Narciso vivo e brilhante, com seu sorriso, seu sotaque em portunhol e os passeios por Madri. Lembro da nossa visita a Igreja de Leganés, uma obra do barroco espanhol. Ele demonstrava gratidão pela companhia e pela culinária espanhola. Narciso era um amor de atenções. Foi triste, ao tentar reencontrá-lo pela internet, ler a notícia do seu falecimento anos atrás. Quando visitei São Paulo, não conseguia olhar as pessoas e as coisas sem ouvir sua voz em nossas conversas.

A correspondência

Narciso foi pró-reitor de Assuntos Comunitários da UFAM, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, o que o obrigou a transitar por diferentes áreas, algumas delas construídas sobre terreno minado, com areia movediça e até lama, mas manteve sempre a dignidade, sem concessão de princípios e “sin perder la ternura jamás”. Faleceu na madrugada de 24 de julho, aos 59 anos, em Manaus, “com câncer e outras doenças” – diz a notícia institucional.

Na ocasião, foi pranteado por colegas, alunos, amigos que choraram sua perda. Agora, em homenagem póstuma e em defesa de sua memória, publicamos a correspondência com Emilio, enviada de várias cidades por onde andou, pensando com isso criar mais uma das “ferramentas para combater o bullying homofóbico”, título do livro de Emilio em coautoria com a psicóloga Raquel Platero, que discute a construção social da sexualidade e combate insultos, injúrias, agressões físicas que não são atos individuais, mas se assentam em bases estruturais da sociedade.

Aliás, Emílio e Narciso se conheceram justamente no COGAM – Coletivo de Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais de Madri, que guarda em sua biblioteca o maior acervo documental LGBT da Espanha e luta contra a hipocrisia e o preconceito. A correspondência entre eles revela uma relação amorosa e de amizade muito bonita, a delicadeza e o refinamento de Narciso, seu engajamento firme na luta contra a homofobia e seu humor. Ofereceu a Emílio um exemplar do cordel “Horóscopo das bichas”. Eis aqui mensagens  que podem nos ajudar a tratar com respeito a diversidade:

No caminho de Madri a Paris (março, 90), num postal que reproduz tela de Hippolyte Flandrin – Jeune homme nu assis au bord de la mer: “Emilio, Viva a beleza e dentro dela a verdade pública e íntima de cada um. Ganhei muito de ter te conhecido. Estou mais entendido e mais terno. Mais tranquilo. Mesmo na eventual distância, te amo mucho, muito. Narciso.

De Manaus (30/04/90) Com uma borboleta do artista amazonense Jefferson Rebello: “Emílio, te amo nas distâncias cercanas. Narciso Júlio”

De Porto Alegre (10/07/90) num postal das Edições Nômades de Fred Maia, o poeta piauiense autor de haikais: “Querido Emílio, estou te escrevendo do extremo sul do Brasil, onde se realiza o Congresso Anual da SBPC. Uma das grandes questões em debate diz respeito ao “descobrimento” da América pelos próprios americanos. Recomendo-te o filme italiano de Alberto Latuada “Cristovão Colombo”. 1992 ainda vai dar muito o que falar. Um beijo. Narciso Júlio”.      

Do México (13/12/90) – Num postal de Siqueiros reproduzindo um mural do Museu Nacional de História do México: “Querido Emilio, aqui no México o movimento gay está sendo muito reprimido, com fechamento de bares e locais. No mais, é um grande país que a colonização espanhola não conseguiu destruir. Abraços. Narciso”.

De Nova York, sem data: “Querido Emílio, também resolvi ver e ouvir Nova York. Tem a maior indústria cultural do mundo. Decepcionei-me com a comercialização de vidas entendidas. No mais, estou curtindo demais. E você, quando irá ao Brasil? Nunca esqueço mi España querida. E tu também. Beijos, Narciso”.

Esse era o nosso querido amigo, Narciso Lobo, Hoje, se vivo, certamente estaria na linha de frente na luta contra a homofobia, cada vez mais crescente, cada vez mais hipócrita, cada vez mais representativa da miséria e da podridão humana. Resta terminar com as palavras escritas por Emílio a Narciso:

Siempre en la memória y en el corazón los seres que te ha regalado la vida al encontrarmos en el camino, y en poco tiempo la intensidade. Siempre me quedará tu recuerdo. 

Um abrazo amigo allí donde estes. Te quiero. Emi.

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Ele diz com todas as letras:

É preciso persistência

Na travessia do grande rio.

 

Diz que a luz do sol poente

Sinaliza o transitório

Da existência impermanente

 

E adverte: Nem euforia desenfreada

Nem tristeza amedrontada

Ambas totalmente erradas

(Narciso Lobo – Jornal da Selva, março de 2009)