A partir de hoje, vou compartilhar com todos alguns fatos que caracterizam a vida dos ex-prefeitos. Falo com experiência própria. O primeiro deles, e é sobre isso que quero falar, diz respeito às cobranças que vem depois que você deixa o cargo por parte de MPF, MPE, TCU, TCE, MEC, MS, MDS, FNDE, FNS, CEF e até mesmo PF.
No pensar destes órgãos o ex-prefeito quando sai tem a obrigação de levar consigo os arquivos da Prefeitura. E aí, chovem intimações, notificações,citações as mais diversas possíveis. Algumas, diria até hilariantes. Todas elas tratando de assuntos que estão nos arquivos da Prefeitura, aos quais o ex-prefeito não tem mais acesso, principalmente se o novo prefeito é seu adversário político. Ao invés de irem lá pesquisar ou intimarem o gestor, deliciam-se em intimar o ex-prefeito. Para que tenham uma ideia tenho quatro gavetas cheias desses papéis e respectivas respostas.
Considero-me relativamente organizado, mas é impossível atender e compreender algumas dessas intimações, além do que, como regra, as pessoas não têm noção de como funciona o serviço público. Algumas delas, principalmente os que ficam em Brasília, e que eu denominei de “burocrata brasiliensis”, que vive em outro mundo que ele imagina ideal, se julgam a bala que matou o Kennedy e estão acima do bem e do mal. Já os ex-prefeitos para eles são inimigos da humanidade, todos ricos, inclusive de tempo, para atender as mais variadas cobranças, muitas delas, como disse, hilariantes.
No ano passado, recebi varias dessas intimações, mas destaco uma que hoje chegou ao seu final. Nela, duas cobranças que seriam trágicas, se não fossem cômicas.
A primeira pedia que esclarecesse fatos ocorridos após 31.12.2008, quando eu não era mais prefeito, mas para eles todo ex-prefeito continua sendo prefeito. Já tenho até uma resposta padrão que repito sempre, do seguinte teor:
“Em relação ao Ofício em epígrafe informo que fui Prefeito de Manaus no período de 01.01.2005 a 31.12.2008. O Parecer nº 2801, de 16/08/2012, abrange fatos ocorridos a partir de 01.01.2009 quando eu não era mais prefeito. Sobre estes, não me cabe prestar qualquer justificativa.”
A segunda referia-se a período em que eu era prefeito e dizia textualmente o seguinte:
“Glosa do valor total das notas fiscais abaixo relacionadas, por estarem em desacordo com o termo de Convenio firmado entre a Prefeitura Municipal de Manaus – CNPJ nº 04.365.326/0001-73, e não com a Secretaria Municipal de Saúde – SEMSA – CNPJ nº 04.461.836/0001-44, visto que, conforme determina o Decreto Lei nº 20.686/99 do RICMS/AM no seu art. 226, combinado com o Ajuste SINIEF S/N de 01 de março de 2007 no parágrafo II, não cabe carta de correção.”
A minha resposta foi:
“Pela leitura do referido item 2.2. a suposta irregularidade apontada é:
O FATO – O Convênio foi firmado com a Prefeitura Municipal de Manaus, mas as Notas Fiscais foram emitidas em nome da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Manaus;
O DIREITO – Tal “irregularidade” não pode ser suprida por meio de carta de correção.
Data Vênia, mas não existe irregularidade alguma, nem quanto ao aspecto factual, muito menos em relação ao aspecto legal.
Vejamos.
O Convenio foi firmado entre o Ministério da Saúde e a Prefeitura de Manaus. O entendimento do parecer é que a Nota Fiscal teria que ser emitida em nome da Prefeitura Municipal de Manaus e não em nome da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Manaus. Ora, é sabido que as Prefeituras são divididas em secretarias e as questões da saúde são tratadas, no caso da Prefeitura de Manaus, pela Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Manaus. A Secretaria de Saúde a que se referem as Notas Fiscais é uma divisão da Prefeitura Municipal de Manaus. Os bens adquiridos passaram a integrar o patrimônio da Prefeitura Municipal de Manaus dentro de uma de suas divisões, no caso, a SEMSA – Secretaria Municipal de Saúde.
Onde a irregularidade?
A Secretaria de Saúde em tela não é de outra prefeitura, muito menos de uma empresa, mas sim da Prefeitura conveniada. Considerar tal fato como irregular seria um excesso de preciosismo de forma. Portanto, data vênia, mas não existe irregularidade.
Quanto ao aspecto legal, veja-se o que diz artigo citado:
Art. 226. Excetuadas as alterações relativas à mudança do destinatário, ao preço unitário e quantidade da mercadoria ou do serviço, qualquer irregularidade verificada no documento fiscal após sua emissão poderá ser suprida por meio de carta de correção.
Parágrafo único. A emissão de Nota Fiscal na hipótese do inciso V do caput do artigo anterior e da carta de correção prevista no caput somente poderá ser feita antes de qualquer procedimento fiscal.
Data Vênia, mas tal artigo é inaplicável ao caso por, pelo menos, duas razões.
A primeira porque não houve mudança de destinatário que continuou a ser o mesmo, quer seja Prefeitura Municipal de Manaus, quer seja Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Manaus, tanto uma denominação quanto outra, tudo é Prefeitura Municipal de Manaus. Não há hipótese de ser qualquer outro.
A segunda, porque tal artigo objetiva coibir que uma empresa com direito a crédito de ICMS transfira mediante carta de correção esse crédito para outra empresa. Não é o caso. A Prefeitura é consumidora final e não tem direito a qualquer crédito.
Por último, registre-se que não há qualquer questionamento de que os bens adquiridos entraram no patrimônio da Prefeitura Municipal de Manaus. Eles entraram sem nenhuma dúvida. Pretender agora que o ex-prefeito seja obrigado a devolver tais valores implica em enriquecimento ilícito da União que é tão absurdo quanto o enriquecimento ilícito de gestores públicos.
Com estes esclarecimentos requeiro seja meu nome excluído do presente.”
Hoje recebi a decisão que disse:
“Tanto o parecer como o relatório de verificação “in loco” acima mencionados eram pela glosa dos valores das despesas que tiveram as Notas Fiscais expedidas em nome da Secretaria de Saúde e não da Prefeitura de Manaus, entretanto conforme justificativa emanada do ex-gestor, que nos foi encaminhada por intermédio do Documento s/nº 9 SIPAR 25009.005047/2012-52), somos pela desconsideração de tal item, pois aquela exauriu de maneira adequada qualquer dúvida que pudesse persistir quanto à matéria avençada;”
Ainda bem que o bom senso prevaleceu. Deu trabalho, mas prevaleceu.