Prossegue a polêmica na área da saúde. Antes, o principal foco era a importação de médicos cubanos. Agora, é a MP que vai obrigar a todos que ingressarem a partir de 2015 nos cursos de medicina, sejam eles públicos ou privados, trabalharem pelo menos dois anos no SUS.
Nesse debate estão sendo ouvidos dois atores – governo e médicos -, mas o terceiro, que não é menos importante, está de fora. Refiro-me ao usuário do sistema de saúde, ao contribuinte, ao que paga tributos que no final das contas é quem paga a conta, de uma forma ou de outra.
Não sou médico, nem sou governo, mas sou usuário do sistema e é nessa condição que quero dar a minha modesta contribuição a esse debate.
FORMAÇÃO DE MÉDICOS
De início é bom registrar que só se fala em importar médicos porque o Brasil não forma médicos em número necessário para atender nossas necessidades. Depois, relembrar que os cursos de medicina sempre foram muito demandados, com vagas abaixo da procura, e durante muitos anos existentes exclusivamente nas universidades públicas. É recente a oferta de cursos de medicina por universidades particulares. E tudo isso dentro de um contexto em que as vagas no setor público, numa completa distorção, são ocupadas preponderantemente por quem estudou o ensino médio na escola particular. Ou seja, pelos que podem mais.
Aliás, é oportuno relembrar aqui como foi viabilizado o curso de medicina da UFAM nos anos 60. Naquela época os vestibulares não eram classificatórios. Havia uma nota mínima e quem a alcançava estava aprovado. Ocorre que o número de vagas nos cursos de medicina era menor que o número de aprovados nas universidades do sudeste. Surgiu, então, uma categoria de estudantes: “os excedentes”, que haviam sido aprovados no vestibular, mas as universidades não tinham vagas para eles. E o grito de mais vagas partia principalmente deles. Esse movimento era muito forte ali no final de 1965, início de 1966. A UFAM, criada em 1962, por projeto do então deputado federal Arthur Virgilio Filho, transformada na Lei nº 4069-A, pela sanção do Presidente Jango e do 1º Ministro Tancredo Neves (o Brasil era parlamentarista) foi implantada a partir de 1965 e o então Reitor Jauary Marinho foi atrás de recursos para implantar os novos cursos, dentre eles o de medicina. Os Ministros de Educação da época – Flávio Suplicy de Lacerda, Pedro Aleixo, Moniz de Aragão e Tarso Dutra – impuseram uma condição: liberavam os recursos para a implantação do curso de medicina, mas metade das vagas seria destinada aos “excedentes”. Ou seja, os recursos só viriam para o estado pobre, o Amazonas, se ele resolvesse o problema dos estados ricos, São Paulo, Paraná e Guanabara. Dr. Jauary acertadamente concordou com a proposta. E aqui chegaram os “excedentes” fazendo o maior sucesso com as jovens do nosso tempo.
Hoje, cinquenta anos depois, a realidade é melhor, mas não muito diferente. As vagas da UFAM, por exemplo, por conta do critério de seleção ENEM/SiSU, tem excluído os que fizeram o ensino médio em Manaus. Formados em Manaus vão fazer residência fora e não voltam. Mesmo em Manaus, nas áreas mais distantes da cidade, os médicos não querem ser lotados. Esse é o quadro com que o setor público se depara.
Por outro lado, falta infraestrutura mínima, a saúde não tem planejamento estratégico, no interior existem inúmeras obras da área da saúde iniciadas e não concluídas, algumas delas há vinte anos.
Os prefeitos e governadores, sozinhos e isolados, não têm condição de resolver essa questão. Pressionaram o governo federal que depois de anunciar que importaria médicos para solucionar o problema, além disso, que abordarei no próximo tópico, anunciou a novidade de aumentar em dois anos a formação dos médicos obrigando-os a trabalhar dois anos no SUS, sob pena de não se formarem, valendo a regra para cursos públicos e privados.
A medida, a meu ver, é radical e trata desiguais de forma igual, o que é injusto. A formação de um médico que estudou numa escola particular custa de R$ 700.000,00 a R$ 1.000.000,00. É quanto a sua família desembolsa. Já o que estuda na escola pública tem seu ensino custeado pela sociedade.
Será justo tratar os dois da mesma forma?
Creio que não e por essa razão suponho que no Congresso isso vai evoluir para a exigência ficar apenas para os médicos formados na universidade pública, sendo que os formados pela particular também poderiam participar para, por exemplo, abater o valor de dívidas com o FIES.
IMPORTAÇÃO DE MÉDICOS
O Brasil é um país bastante corporativista. Isso vale para todas as categorias e os médicos estão nesse contexto.
Os Conselhos, que deveriam fiscalizar e punir os desvios, agem de forma corporativa, sem se importar com os usuários dos serviços médicos e um bom exemplo disso foi a reação patética de uma paciente que se despiu no CRM-AM, pois foi mutilada por um médico contra quem fez uma representação, mas contra quem o CRM-AM nada fez.
A reserva de mercado é uma prática constante.
O tratamento dado pelos órgãos representativos de classe às questões trabalhistas é bem diferente entre o setor público e o privado. O salário de um médico é baixo, tanto no setor privado, quanto no setor público. No privado é muito menor, em alguns casos, metade, mas não há greve. Já no setor público, são usuais as paralisações.
Isso faz com que, ao lado da confiança, admiração e respeito que os pacientes têm por aquele médico que lhe atende bem e salvou a sua vida ou de um parente e/ou amigo, haja a mais absoluta desconfiança em relação à categoria como um todo.
Daí que os usuários do sistema, em especial os dos lugares mais distantes onde não existem médicos, aceitarem com normalidade a importação de médicos, pois na cabeça deles se o médico não é tudo, sem infraestrutura para o atendimento, não ter nem o médico é muito pior. Certa feita, conversando com um religioso sobre a questão da saúde num município onde só existiam dois médicos, um casal de peruanos, perguntei-lhe se eles tinham CRM, ao que ele me respondeu: “Nem fale nisso. Eles pelo menos nos atendem”. Ou seja, para quem precisa, CRM é algo que ele nunca ouviu falar. Aliás, quando o CRM foi ao interior fiscalizar a situação dos médicos estrangeiros que preponderam nas nossas mais distantes regiões?
A regra para que um médico estrangeiro possa exercer a sua profissão no Brasil é passar por um exame chamado “REVALIDA”. Esse exame avalia se o médico estrangeiro tem condições de atuar ou não. Uma espécie de Exame da OAB, apenas para os estrangeiros. Por que não para todos? pergunto eu.
E aí, de novo, se faz presente o espírito de reserva de mercado pelas complexidades do exame. Primeiro, ele não ocorre regularmente, ou seja, não se tem data certa para a sua realização, nem onde será realizado e, só isso, já inviabiliza pela incerteza que causa a vinda de um médico estrangeiro que, por melhor que seja a sua formação, ficará impedido de trabalhar pelo menos durante um ano. Imaginem um médico formado em Harvard, que tenha trabalhado nos melhores hospitais americanos e fale bem o nosso idioma. Ele só vai poder trabalhar no Brasil, após o REVALIDA, que pode, ou não, acontecer. Enquanto isso não ocorre, ele não pode trabalhar. Faz sentido isso? Que outro nome que não reserva de mercado?
Para superar essa questão, o Governo, através da MP nº 621/2013, estabeleceu as seguintes regras:
Art. 10. O médico intercambista exercerá a medicina exclusivamente no âmbito das atividades de ensino, pesquisa e extensão do Projeto Mais Médicos para o Brasil, dispensada, para tal fim, a revalidação de seu diploma nos termos do § 2o do art. 48 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
§ 1o Fica vedado ao médico intercambista o exercício da medicina fora das atividades do Projeto Mais Médicos para o Brasil.
§ 2o Para exercício da medicina pelo médico intercambista no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil será expedido registro provisório pelos Conselhos Regionais de Medicina.
§ 3o A declaração de participação do médico intercambista no Projeto Mais Médicos para o Brasil, fornecida pela coordenação do programa, é condição necessária e suficiente para a expedição de registro provisório pelos Conselhos Regionais de Medicina, não sendo aplicável o art. 99 da Lei no 6.815, de 19 de agosto de 1980, e o art. 17 da Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957.
§ 4o O registro provisório será expedido pelo Conselho Regional de Medicina no prazo de quinze dias, contado da apresentação do requerimento pela coordenação do programa de aperfeiçoamento, e terá validade restrita à permanência do médico intercambista no Projeto Mais Médicos para o Brasil, nos termos do regulamento.
§ 5o O médico intercambista registrado provisoriamente estará sujeito à fiscalização e ao pagamento das anuidades estabelecidas pelo Conselho Regional de Medicina em que estiver inscrito, conforme legislação aplicável aos médicos inscritos em definitivo.
§ 6o O médico intercambista não participará das eleições do Conselho Regional de Medicina em que estiver inscrito.
Art. 11. As atividades desempenhadas no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil não criam vínculo empregatício de qualquer natureza.
Art. 12. O médico intercambista estrangeiro inscrito no Projeto Mais Médicos para o Brasil fará jus ao visto temporário de aperfeiçoamento médico pelo prazo de três anos, prorrogável por igual período em razão do disposto no § 1o do art. 8o, mediante declaração da coordenação do projeto.
§ 1o O Ministério das Relações Exteriores poderá conceder o visto temporário de que trata o caput aos dependentes legais do médico intercambista estrangeiro, incluindo companheiro ou companheira, pelo prazo de validade do visto do titular.
§ 2o Os dependentes legais do médico intercambista estrangeiro poderão exercer atividades remuneradas, com emissão de Carteira de Trabalho e Previdência Social pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
§ 3o É vedada a transformação do visto temporário previsto neste artigo em permanente.
§ 4o Aplicam-se os arts. 30, 31 e 33 da Lei no 6.815, de 1980, ao disposto neste artigo.
Tenho minhas dúvidas em que prevaleçam muitos destes artigos, principalmente o art. 11, mas vamos aguardar os debates sobre o tema.