Em seu Discurso sobre a Servidão Voluntária, o filósofo francês Etienne de La Boétie sacudiu a letargia da monarquia europeia do Século XVI, para alertar sobre os riscos do poder que um só homem (monarca ou presidente) exerce sobre os outros. E que as crenças religiosas e a promessa política são frequentemente usadas pelo poder para manter o povo sob sujeição e jugo. Ele anteviu, com dois séculos, a Revolução Francesa ao destacar a liberdade e a igualdade de todos os homens na dimensão política e ao antecipar o papel e a força da opinião pública para repelir todas as formas de demagogia. Morreu aos 33 anos.
O Discurso ilumina a compreensão das graves e elucidativas denúncias de descaso – expressas no relatório do Tribunal de Contas da União – sobre os modais de transporte no Estado do Amazonas, feitas nesta quarta-feira, na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia da Câmara dos Deputados. Elas confirmam o tamanho da indiferença e a distância entre o discurso da promessa e a prática da gestão federal na região. É um desvelamento da desatenção federal, expresso no abandono de políticas públicas, na falta de planejamento estratégico e de enfrentamento dos gargalos infraestrutura, notadamente na área de transporte na Amazônia como um todo. Problemas que não se resolvem com o discurso de meio século de prorrogação. As discussões tomaram por base os dados desconcertantes do Relatório de auditoria, realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), focado especificamente no diagnóstico da logística de transporte no Estado do Amazonas, em seus modais terrestre, aquaviário, hidroviário e aeroviário. O descaso é vesgo pois atinge um estado que responde por 2/3 da arrecadação federal na Amazônia. Uma conduta que compromete a competitividade de uma indústria que poderia e deveria irradiar benefícios e oportunidades para a região se dispusesse de modais inteligentes e eficientes de transporte.
O Comitê de Logística da FIEAM/CIEAM manifestou seus protestos, recentemente, à SUDAM, Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, fundados na premissa de que a logística dos transportes é indutor essencial para o desenvolvimento de uma região, e que o Amazonas não conta com investimentos expressivos neste campo desde a década de 1970. Já há alguns anos, formulou uma proposta, encaminhada ao conhecimento da Bancada Parlamentar – governista, pra azar do interesse local – de ter o mínimo de 2% do PIB, o somatório das riquezas produzidas no Amazonas, investido no Estado e região para construção de novos eixos de infraestrutura de transporte. Isso permitiria romper o isolamento rodoferroviário histórico e mitigar a baixa competitividade da indústria local. O alerta incluiu ainda a discordância sobre o Programa Norte Competitivo, financiado pela indústria (CNI) para identificar e propor saídas aos gargalos regionais de transporte, e que se revelou muito mais empenhado em atender as demandas de escoamento do agronegócio do Centro-Oeste do país, negligenciando as lacunas, gargalos e demandas de infraestrutura dos estados da Amazônia de modo equânime e integrado, sobretudo do modelo Zona Franca de Manaus. É curioso que, na semana passada, técnicos do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação redirecionaram algumas dezenas de milhões de dólares de Pesquisa & Desenvolvimento, recolhidos pelas empresas de informática de Manaus, e que seriam usados em programas locais de P&D, para o agronegócio. Além do descaso, paira no ar um clima e aura de intimidação.
Cabe resgatar que, de 1995 a 2002, na gestão Fernando Henrique Cardoso, existiu apenas um investimento significativo para a logística da indústria do Amazonas: a BR-174, ligando Manaus à Boa Vista, em direção ao Caribe. No período seguinte, de 2003 a 2010, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o único investimento em logística foi um armazém de cargas no Aeroporto Eduardo Gomes, em Manaus. É contundente a sensação do abandono para a infraestrutura logística no Estado e injusto com um Estado que comparece com aproximadamente 60% dos recursos da receita federal na Região Norte. Diferentemente do que se possa conceber, Manaus não é distante. O que é distante, historicamente, é o olhar federal para os gargalos de infraestrutura logística do Amazonas. Dizer que o Amazonas é distante é desconhecer a História da Economia da Borracha, que agregou, por três décadas, 40% a 45% de riqueza ao PIB do país, graças aos investimentos ingleses na logística dos transportes. Distante, a rigor, é a China, mesmo assim, hoje é mais barato trazer um contêiner de Shangai para Santos, em São Paulo do que de Manaus para Santos.
Pelo Plano Nacional de Logística de Transporte (PNLT), do Ministério dos Transportes, há sete projetos de hidrovias na região amazônica, que somam 5.838 quilômetros e investimentos na ordem de R$ 1,55 bilhão. Nenhuma delas está na lista de prioridades do Governo Federal. Nem estavam quando havia um ministro na área de Transportes na cota política do Estado. Na audiência pública, o assunto que mais causou polêmica e maior debate foi a implantação dos terminais hidroviários no interior do Amazonas. De acordo com o PNLT, estão em obras 40 portos nos municípios e outros 30 estão por serem construídos em Manaus e em todo o Estado do Amazonas, com investimento total de R$ 1,66 bilhão. As obras se guiam pelo padrão tartaruga e os investimentos estão contingenciados até segunda ordem.
Como promover a interiorização da economia se os recursos do Orçamento para a região minguam a cada ano, os recursos do Fundo Amazônia, destinados a programas de desenvolvimento sustentável para a região? Recursos que esbarram numa burocracia que demora 300 dias para analisar um projeto, sem garantias do compromisso de ajustes para sua aprovação. Como interiorizar programas de diversificação da economia se os recursos das Taxas da Suframa seguem contingenciados, os recursos de P&D desviados de suas finalidades e atribuições? Há um esvaziamento institucional dos órgãos federais locais, não apenas do Desenvolvimento, como em C&T&I, Agricultura, Energia, Transportes e por aí vai, ao sabor de um descaso explícito que deveria empurrar a todos – na contramão do servilismo governista – a uma efetiva prontidão e inadiável providência de mobilização. No mínimo para visitar, compreender e utilizar o alerta profético de Etienne de la Boétie.
Alfredo MR Lopes
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