Eles passaram 20 anos se construindo como adversários, uniram-se durante a eleição de Lula, brigaram tanto que perderam o poder e, também, a perspectiva de futuro na política
De OGLOBO.COM por José Casado:
BRASÍLIA — Os convidados ficaram impressionados: além de belas mulheres adornando o ambiente, havia um minipalanque com microfone, holofotes e câmeras prontas para quem quisesse usar. Anunciava-se a harmonia entre a cúpula do PTB e José Dirceu, chefe da Casa Civil. O governo Lula sequer completara 90 dias, e o partido de Roberto Jefferson e José Carlos Martinez cuidava de reafirmar a Dirceu, numa noite de verão em Brasília, a disposição em servir sob seu comando na “base aliada”. O ministro recebeu de Martinez um reluzente relógio Rolex: — É a nossa autoridade maior — justificou Jefferson, ao mencionar o valor aparente (R$ 5 mil).
Meses depois, Dirceu telefonou: — Martinez, o Rolex que você me deu de presente é falso!
A história correu do Palácio do Planalto para os plenários da Câmara e do Senado. Houve quem vislumbrasse nela uma profecia: — Como o relógio, o acordo deles e o apoio do PTB também devem ser falsos — ironizou da tribuna o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA). Conhecia os personagens e, como poucos, sabia que uma biografia é feita também pelos adversários que se constrói na política. Não havia risco de dar certo, observando-se o prontuário das relações de Dirceu e Jefferson.
Onze anos antes, Dirceu estava no ataque. Integrava a CPI sobre os negócios de Paulo César Farias, caixa de Fernando Collor na eleição de 1989 quando derrotou Lula.
Era junho de 1992, a CPI tinha 20 dias de funcionamento e não coletara uma única prova, mas Dirceu já proclamava: — O presidente é conivente com a corrupção e tráfico de influência, e isso basta para um processo de impeachment.
Ele e Jefferson já haviam trombado na Comissão de Seguridade Social. Dirceu sugerira convocar a mulher do presidente, Rosane Collor, para depor sobre corrupção. Na época, Rosane chefiava um órgão público de assistência social e Dirceu já produzira 180 requerimentos sobre suspeitas de irregularidades.
Jefferson presidia a comissão e explodiu. Gritava (“Não se faz política tentando atingir a família”), enquanto avançava na direção de Dirceu. Foi contido. Semanas depois o derrotou na votação do requerimento para convocar Rosane (por 30 a 3). Descobriram-se inimigos. Collor encontrou o líder de sua “tropa de choque”.
Na CPI, o defensor do presidente chegava armado, muitas vezes carregando uma mala preta quadrada em que, suspeitava-se, facilmente caberia uma metralhadora. Escolhia o fundo do plenário, posição incoerente para quem comandava uma “tropa de choque”.
—Era meu segredo — ele conta: — No auge daquela confusão, descobri um câncer no testículo direito. Não contei a ninguém, nem à família. Vinha ao Rio fazer radioterapia e voltava a Brasília na manhã seguinte. Sabe o que tinha na mala? Não era metralhadora. Eram fraldões! Sentava no fundo, porque a toda hora tinha de ir ao banheiro, efeito da terapia.
Com 150 quilos de pura ansiedade e agressividade, era chamado de troglodita pelos adversários.
—E era mesmo. Andava balançando, que é como um gordo faz para se defender do impacto no joelho, fumava muito, bebia muito, comia muito e ainda levava uma caixa de chocolates no bolso. E como tinha horror à esquerda que quer acabar com a liberdade individual, a toda hora queria sair na mão com os petistas.
Dirceu anunciava horror à direita, que personificava em Collor no Palácio do Planalto e em Jefferson no Congresso. Também investia no confronto, coordenando ações de Eduardo Suplicy e José Paulo Bisol no Senado, José Genoino e Aloizio Mercadante na Câmara.
Suplicy vocalizou a suspeita de que Jefferson, advogado criminalista, poderia ter recebido um milhão de dólares pela defesa de Collor na CPI. O deputado partiu para cima do senador do PT, boxeador nas horas vagas. Foi interrompido por uma “gravata” de um segurança — inesquecível para ambos. Soltou-se, vislumbrou o terno branco de Bisol na saída do plenário e foi atrás, mas não conseguiu alcançá-lo.
A convivência no tapete verde da Câmara ficou insuportável. — Não desperto isso em ninguém, só nele — repetia Dirceu. Esse enredo de ódio era uma gota na oceânica crise institucional. Ególatras, construíam-se como adversários. Do lado de fora, um governo ruía por corrupção, e o presidente da República buscava a salvação em sessões de magia negra.
Ao impeachment seguiu-se a CPI do Orçamento. Desacreditado, Jefferson viu-se outra vez sob suspeita de corrupção, pela voz do senador Bisol, que trocara o PT pelo PSB do ex-governador pernambucano Miguel Arraes. Foram meses de imobilização até o arquivamento da denúncia, aparentemente por interferência de Arraes. Ruminava ressentimento.
Deu o troco no meio da eleição presidencial de 1994. Denunciou Bisol, então candidato do PSB à vice-presidência na chapa de Lula, por suposta corrupção no Rio Grande do Sul. Usou toda a sua habilidade de bom orador, que valoriza as vogais, foge das consoantes e não rosna nas fricativas, em um dos mais rancorosos discursos pronunciados da tribuna do Congresso: — Senhor presidente, vim para contar a história de rabo preso de um senador de rabo solto…
Bisol renunciou à candidatura como vice de Lula, que foi derrotado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no primeiro turno.
Quem forneceu os papéis, distribuídos aos jornalistas depois do discurso?
— Foi o doutor Arraes, aquele era o “dossiê Arraes” — ele conta.
Arraes disputava espaço na oposição com Lula. Pela versão de Jefferson, o líder do PSB preferiu fritar o representante do seu partido na aliança com o PT. Arraes se elegeu governador de Pernambuco, tornou-se um dos principais adversários do governo Fernando Henrique, mas não conseguiu se reeleger quatro anos depois.
O tempo arrefeceu a memória das mútuas desfeitas. Oito anos mais tarde, Jefferson e Dirceu se reencontraram. Uniram-se em torno da perspectiva de poder.
Estavam na reta final da eleição de Lula, em 2002, e renovados à sua maneira: Dirceu pela plástica, Jefferson pela perda de 100 quilos com cirurgia no estômago. E, entre eles, o ânimo conciliador de Lula e Martinez.
Começava a montagem da “base aliada”: — É um bolero, dois pra lá e dois pra cá — definia Dirceu. Exalava euforia: — A oposição pode vir quente que nós estamos fervendo, o modo petista de governar tem força.
No final de 2003, um grupo de fundadores do PT lançou um manifesto crítico ao “dois pra lá e dois pra cá” de Dirceu. Ele ironizou:
— Se quiserem formar um novo partido. A Convergência Socialista criou o PSTU e, como sabem, hoje é um dos maiores partidos do Brasil.
Um ano depois, em outubro de 2004, enquanto o barítono Jefferson cantava “Eu sei que vou te amar” para Lula, recostado num sofá vermelho, os dissidentes abandonaram o PT e fundaram o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Pouco tempo depois, o passado bateu à porta de Dirceu e Jefferson. O deputado achou que o chefe da Casa Civil iria tomar-lhe o controle do PTB, via mensalão. Voltou ao confronto.
Menos ansioso nos seus novos 82 quilos, Jefferson resolveu se incriminar para dar credibilidade à denúncia, como Ródion, o personagem de Dostoiévski em “Crime e castigo”.
— Você lembra da paixão pelo suicídio na ópera ‘Butterfly’? Pois é, sem tragédia, sem sangue e sem ódio o povo não gosta — argumenta.
O resultado dessas duas décadas de duelo depende agora de uma decisão do Supremo. Eles se arriscaram e podem acabar assistindo à própria “morte” na política.
Comentário meu: Um pouco de história: esse relógio foi comprado em Manaus por um então deputado do PTB amazonense em uma loja de relógios atendendo solicitação do então presidente do PTB, José Carlos Martinez, hoje já falecido. O preço não foi 5 mil, mas sim 200 reais. Quando foi descoberto que o relógio era falso, Martinez cobrou do deputado que por sua vez foi na jugular do dono da loja que se saiu com a seguinte pérola: “Alto lá, não é falso. É uma réplica. Pelo preço, só podia ser, né? “