Por Everardo Maciel:
Os desvios éticos do Estado têm gravidade análoga à corrupção dos agentes públicos. São, entretanto, menos perceptíveis, porque, usualmente, se fundamentam em lei, o que lhes confere falso brilho. O legislador romano já alertara que a legalidade não presume moralidade (non omne quod licet honestum est).
Esses desvios, ofensivos ao princípio da moralidade (art. 37 da Constituição), se revelam por meio da assimetria de tratamento nas relações do Estado com o cidadão, na falta de clareza da lei e de transparência na gestão governamental, na desídia institucional no serviço público, etc.
Revisito o tema para apontar mais desvios éticos do Estado brasileiro, mesmo sabendo que matéria é pouco prestigiada, à vista do seu presumido respaldo legal.
Decisão do STF obrigou a União recompor perdas dos beneficiários do FGTS, onerados por expurgos inflacionários dos denominados Planos Verão e Collor. O montante exigido, à época, para recomposição era estimado em R$ 42 bilhões. Para esse efeito, construiu-se uma bem articulada combinação de fontes de financiamento, dentre elas, nos termos da Lei Complementar nº 110/2001, uma contribuição social específica a ser paga pelos empregadores, nos casos de demissão sem justa causa dos empregados, consistindo em uma alíquota de 10% aplicável sobre os correspondentes depósitos do FGTS.
A contribuição foi vinculada àquela finalidade, ainda que legislação não tenha fixado termo final de vigência. Em fevereiro de 2012, a Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, anunciou que a recomposição se encerrara.
O Congresso Nacional, acertadamente, aprovou projeto de lei complementar extinguindo, a partir de 1º de junho de 2013, a contribuição, por perda de objeto. O Poder Executivo, contudo, decidiu vetar a norma aprovada, alegando que haveria uma perda de R$ 3 bilhões anuais nos programas sociais e de infraestrutura financiados pelo FGTS e, por conseguinte, ofenderia a Lei de Responsabilidade Fiscal, que demanda compensações para renúncias fiscais.
Trata-se rigorosamente de uma falácia. A aplicação dos recursos oriundos daquela contribuição em programas governamentais, independentemente do seu mérito, representa um flagrante desvio de finalidade.
Matérias veiculadas pela imprensa demonstram que prossegue a lavratura de autos de infração astronômicos contra contribuintes com boa reputação, auditados regularmente, sujeitos a controle de agências governamentais e com ações em bolsa. Ainda que a condição desses contribuintes não possa resultar em privilégios, o fato é intrigante. Não se trata, seguramente, de evasão fiscal. O fundamento dos autos estaria associado ao nebuloso campo do planejamento tributário.
Em 2002, o Congresso rejeitou proposta de disciplinamento da matéria. Desde então, perdura uma lacuna legislativa que abriu espaço para arbitrariedades contra contribuintes, com danos à sua imagem e patrimônio. Enquanto inexistir sucumbência nos processos administrativos, em caso de dúvida subsistirá uma esdrúxula presunção de culpa do contribuinte.
De igual forma, assim como no pagamento de precatórios, consolidou-se a indisposição das administrações fiscais para devolver créditos acumulados dos contribuintes, constituídos por força, sobretudo, de desoneração nas exportações.
O Reintegra, regime tributário instituído em 2011, com vigência até 2013, pretendeu devolver às empresas exportadoras os resíduos de cumulatividade gerados na cadeia produtiva. Proposta do Congresso prorrogando sua vigência foi, entretanto vetada pelo Executivo. Sendo razoável admitir-se que não se tratava de subsídio ilícito às exportações, a extinção configura claramente confisco.
Contrasta com esses fatos, a voracidade na execução dos créditos fiscais, às vezes cobrados de forma vexatória, o que evidencia excesso de exação, ou com desprezo ao devido processo legal.
A imoralidade do Estado não fosse um mal em si retira sua legitimidade ao exigir do cidadão o cumprimento de obrigações. O Congresso Nacional tem uma rara oportunidade de melhorar sua imagem, derrubando os vetos e eliminando os vazios legais.