O Brasil tem tramitando 92 milhões de processos para uma população de 198 milhões de pessoas. Como num processo existem pelo menos duas partes isso significa dizer que praticamente toda a população está em litígio.
Isso decorreu, em grande parte, da redução da capacidade da nossa sociedade de buscar soluções negociadas onde cada uma das partes abre mão de algo para que o entendimento aconteça permitindo o avanço daquilo que se convencionou chamar judicialização da vida, ou seja, qualquer dificuldade entre partes buscar logo no Estado Juiz, o Judiciário, a solução. Pior é que essa forma de pensar terminou sendo predominante, tanto na vida privada como no setor público durante décadas e só agora, diante do estrangulamento da Justiça, começa a refluir.
Exemplos existem para todos os gostos como:
● – as execuções fiscais de débitos de pequeno valor referentes ao IPTU pelas prefeituras Brasil afora (no TJAM, mais de 400.000 ações desse tipo) ;
● – as execuções fiscais dos Conselhos Profissionais (1/3 dos processos da Justiça Federal);
● – as brigas de vizinho;
Para que houvesse a predominância da judicialização em muito concorreu a cultura reinante no seio do funcionário público de criar dificuldades ao invés de encaminhar soluções. Isso faz com que as pessoas procurem logo o Judiciário ao invés de esgotarem a esfera administrativa que deveria seguir o principio da informalidade e obedecer ao que diz a CF/88 e a própria Lei nº 9784/99.
Certa feita em um Congresso de Direito Tributário ouvi do professor Hugo de Brito Machado o relato de um fato que resume essa cultura.
Contou ele que em Fortaleza uma empresa com débitos de ICMS foi impedida pela Secretaria de Fazenda de ter autorização para imprimir talonários de notas fiscais. Mantida a regra, a empresa fecharia as suas portas. Ele como advogado formulou uma petição ao Secretário de Fazenda e mandou protocolar, mas o agente de portaria disse que não ia receber porque era inconstitucional.
Ele nesse momento dirigindo-se a um Ministro do STF que estava compondo a mesa disse: “Ministro, até aí eu não sabia que o controle da constitucionalidade tinha sido transferido do STF para o agente de portaria da SEFAZ-CE” provocando risos na plateia. Resolveu ir à SEFAZ e lá ouviu o inusitado do responsável pela receita fazendária do Ceará: “Professor, eu sei que é inconstitucional o que fazemos, mas que funciona, funciona”.
Ou seja, o que podia ser resolvido administrativamente terminou no Judiciário.
Falta respeito às leis, mas, sobretudo falta bom senso. É comum assistirmos a recusa de funcionários públicos em receber documentos para que instruam processos administrativos e com isso geram mais um processo judicial.
A Constituição consagra o direito de petição em seu artigo 5º, XXXIV, ao dizer:
XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
e a Lei nº 9784/99 detalha os direitos dos administrados em seu art. 3º, incisos, em especial o inciso III:
DOS DIREITOS DOS ADMINISTRADOS
Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;
II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;
IV – fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei.
Na prática, no entanto, o que se vê é a recusa sistemática da administração pública em cumprir a lei. E quando isso acontece com quem devia dar o exemplo naturalmente o Judiciário termina sendo o destino.
Mudar essa realidade é um desafio que está colocado para todos nós, o que só será possível com a mudança dessa cultura e isso, todos sabem, demora, pelo menos, o tempo de duas gerações, mas é preciso começar. E a hora é agora.
Sem superar esse desafio o Brasil vai continuar perdendo a batalha contra a burocratização e com isso reduzindo a competitividade nos negócios e a qualidade de vida da população.