Por Ribamar Bessa:

Parece que os assassinos se inspiram em Genghis Khan que no séc. XIII, de forma indulgente, poupava a vida dos prisioneiros de guerra a quem deixava retornar em liberdade às suas casas. No entanto, para impedir que batessem com a língua nos dentes e passassem informações ao inimigo, cortava suas línguas. Daí a origem do provérbio mongol:
– Quem tem língua cortada não fala.
A mutilação praticada pelo exército mongol continua sendo feita simbolicamente no planeta. O crime é justamente esse: o glotocídio. A cada quinze dias morre o ultimo falante de uma das 6.700 línguas faladas atualmente em 193 países. Com ele desaparece para sempre mais uma língua.
Com o objetivo de criar estratégias para fortalecer as línguas ameaçadas na América Latina, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Ministério da Cultura organizaram nesta semana, de 17 a 20 de novembro, em Foz do Iguaçu, um encontro de autoridades e de alteridades no Seminário Ibero-americano da Diversidade Linguística, que reuniu mais de 400 pessoas comprometidas com a luta pelos direitos linguísticos das minorias. Participaram dos debates linguistas, historiadores, antropólogos, falantes de línguas indígenas e de línguas minoritárias de migração, além da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).
Durante o evento foi entregue o certificado das
três primeiras línguas reconhecidas como referência cultural brasileira pelo IPHAN: o guarani – que é falado também em outros países do Mercosul, o Assurini do Trocará – língua falada nas margens do rio Tocantins (PA) e que quase desaparece afogada na hidroelétrica de Tucurui e o Talián – vinda com os migrantes do norte da Itália e que hoje é falada no sul do Brasil. Essas três línguas, depois de terem sido cuidadosamente documentadas, fazem parte agora do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL).

Línguas minorizadas
O reconhecimento de uma língua como referência cultural requer que ela seja falada em território brasileiro há pelo menos três gerações e que seus falantes solicitem ao IPHAN o pedido de inclusão no INDL, que é então analisado por uma comissão técnica interministerial. Esse caminho pode ser seguido por mais de 300 línguas faladas no Brasil, entre elas as línguas indígenas que são autóctones e estão aqui enraizadas e as línguas alóctones que vieram para o Brasil trazidas por migrantes. Das línguas indígenas apenas 11 têm acima de cinco mil falantes, o que significa que a maioria corre sério risco de extinção.
Essas línguas chamadas minoritárias foram minorizadas no processo histórico, ficando com número reduzido de falantes: apenas 5% da população do planeta. No entanto, elas constituem maioria expressiva se considerarmos a quantidade de línguas faladas no mundo inteiro por tais minorias, que representam 95% das línguas existentes no Atlas Linguístico Mundial, 15% das quais em continente americano. Portanto, os direitos linguísticos reivindicados se referem a uma minoria de falantes, mas também à maioria das línguas existentes no mundo que garantem a manutenção da glotodiversidade.
O que é, afinal, que se quer com a defesa da diversidade linguística? Já seria plenamente justificável lutar exclusivamente pelos direitos legítimos das minorias de continuarem pensando, cantando, amando, narrando, trabalhando e sonhando em suas línguas, mas essa luta ganha força quando sabemos que ela inclui a sobrevivência das próprias línguas, que só seus falantes podem garantir. Muitas espécies vivas de plantas e de animais que estão em perigo são conhecidas apenas por determinados povos cujas línguas – que produziram e armazenam tais conhecimentos – são consideradas moribundas e estão ameaçadas de extinção.
O linguista Aryon Rodrigues, depois de esboçar um panorama das línguas indígenas da Amazônia, concluiu que nelas se encontram fenômenos fonéticos, gramaticais, de construção do discurso e de uso das línguas, que não se encontram em línguas de outras partes do mundo. Daí a preocupação de mantê-las vivas. Essas línguas constituem, junto com o material arqueológico disponível, as pistas que melhor nos informam sobre a ocupação do território americano, datas e movimentos migratórios.
A sobrevivência das línguas ditas minoritárias interessa, portanto, não apenas aos seus falantes, mas ao conjunto da humanidade, pois está relacionada à preservação da biodiversidade. A diversidade linguística se torna assim tão vital para a sobrevivência da espécie humana quanto à diversidade biológica.
O glotocídio

– Uma língua começa a desaparecer quando seus falantes são expulsos de suas terras ou quando a comunidade, por essa e por outras razões, perde o desejo de preservá-la” diz Crystal, para quem “se uma língua que nunca foi documentada morre, é como se jamais tivesse existido, porque não deixa qualquer vestígio. E uma língua morre – diz ele – quando o penúltimo falante desaparece, pois então o último já não tem mais ninguém com quem conversar”.
No seminário foi lembrado o drama recente de dois índios. Um deles – Tikuein – único falante da língua Xetá, vivia na aldeia São Jerônimo, norte do Paraná com índios Kaingang e Guarani. Como estratégia para manter a língua viva, ele falava com o espelho e algumas vezes, caminhando pela aldeia, com um interlocutor fictício.
O outro caso foi registrado em 1978 por Zelito Viana no filme Terra de Índio. Ele gravou dona Maria Rosa que vivia no Posto Indígena Icatu (SP) e era ali a única falante da língua Ofaié Xavante. Quando a fez escutar o que ela mesma havia dito, dona Maria Rosa estabeleceu um diálogo com o gravador, a quem perguntou por seu pai, por sua mãe e no final se despediu do aparelho dizendo: “Até logo, agora não falo mais porque estou rouca, viu?”.
A extinção é um risco permanente para as línguas minoritárias, principalmente as indígenas, devido ao reduzido número de falantes e ao uso social restrito. Não existe literatura escrita nessas línguas, nem espaço na mídia. Em cinco séculos, nessas condições, mais de 1.100 línguas indígenas desapareceram do mapa do Brasil e outras tantas do continente americano, levando com elas conhecimentos, cantos, rezas, narrativas, poesia, mitos, afetos.
O jesuíta João Daniel, no seu “Tesouro Descoberto do Rio das Amazonas”, com distanciamento crítico, conta como um missionário espancou uma índia do Marajó com bolos de palmatória dizendo: “Só paro de bater quando você disser “basta”, mas não na tua língua”. Ela calou. Suas mãos sangraram. Ele concluiu que as mulheres – a quem talvez o mundo deva a preservação de muitas línguas – eram mais resistentes que os homens, que migravam de uma língua a outra com mais frequência. Desta forma, centenas e centenas de línguas foram extirpadas a ferro e fogo.
Inventário de Línguas

O Inventário Nacional da Diversidade Linguística Brasileira (INDL) criado por Decreto Federal de 2010 tem o objetivo de conhecer e fortalecer as línguas minoritárias. Ele dialoga com a Carta Europeia sobre as Línguas Regionais ou Minoritárias (1992) e a Declaração Universal para a Promoção da Diversidade Cultural – Unesco (2005), além da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos (1996) de Barcelona, que surgiu das comunidades linguísticas e não dos Estados nacionais.
No Brasil, existem vários projetos destinados a identificar, documentar, reconhecer e valorizar as línguas portadoras de referência à identidade como o PRODOCLIN, do Museu do Índio, que documentou cerca de 20 línguas e culturas indígenas e projetos do Museu Goeldi e do Laboratório de Línguas da UnB, entre outros.
Reconhecer essas línguas não é simplesmente aceitar formalmente a sua existência, mas considerá-las parte da nossa história. Como escreveu Bartolomeu Meliá, que fez a conferência final, “a história da América é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas”.
P.S. Mais informações sobre o seminário ver:
https://www.facebook.com/580632275396873/photos/a.598022100324557.1073741828.580632275396873/611702805623153/?type=1&theater
Mais detalhes sobre o homem que falava com o espelho em http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=21
Para não falar com o espelho ver:
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=876