Por Ribamar Bessa:

Niguém sabe, nem o próprio jornal que ajudou a construir esse anonimato, quando noticiou a morte de seu diretor (n° 615, 10/12/1905). A primeira frase é a única informativa: “Morreu o major Rocha dos Santos”. Depois, o texto arreganha os adjetivos, que jorram aos borbotões, matando-o pela segunda vez. O relato não diz a idade do falecido nem como viveu, faz silêncio sobre sua família apenas mencionando o “idolatrado filho auzente na hora extrema”, omite lugar e circunstâncias da morte, anestesia o leitor com mais adjetivos e justifica assim a ausência de informações:
“A commoção de que nos achamos possuídos n’este momento, nós que o tínhamos como chefe, como director, como amigo, não permite que façamos uma synthese sequer do que foi esse homem”.
Então, está explicado: negamos qualquer informação, nada mencionamos sobre sua trajetória profissional, não dizemos como ele viveu e morreu, porque estamos profundamente emocionados. A emoção é inimiga da informação? No lugar da biografia, derramamos uma enxurrada de adjetivos que qualificam Rocha dos Santos como “tenaz, inteligente, abnegado, denodado, devotado”, destacando que foi “um luctador, affeito à adversidade, batalhador vigoroso” que conquistou “posição elevadíssima na sociedade”. Em que consistiu suas batalhas? Sabe Deus!
Paneiro de adjetivos

Quando comprou o jornal, Reis levou para a redação alguns intelectuais locais, alguns bons, outros berinhos, que chegaram com paneiros cheios de adjetivos até o tucupi. Dessa forma, o Jornal do Commércio incorporou no seu texto outros assassinos da notícia. Os adjetivos formaram quadrilhas e passaram a andar em duplas de Cosme e Damião, ou em grupos maiores e até em bandos, quase sempre vestindo roupagem superlativa. Uma edição comemorativa relembra as mudanças ocorridas depois da morte de Rocha dos Santos:
“Foi em abril de 1907 que a direção do Jornal se viu confiada ao nosso querido e boníssimo companheiro dr. Vicente Reis. Na alevantada missão que se impôs, tem sido em boa hora assistido pela cooperação efficaz e brilhantíssima de alguns dos mais conhecidos e illustres confrades contemporâneos, lidos sempre com agrado em qualquer produção onde respondam as múltiplas facetas do seu robusto engenho” (n° 3118, de 02/01/1913)
Os covardes substantivos nunca andam sozinhos, vêm sempre acompanhados de um ou de vários adjetivos. O companheiro se sentia mais seguro ao lado do “querido” e do “boníssimo”; a cooperação era mais “eficaz”, se “brilhantíssima” e os confrades “contemporâneos” eram “conhecidos” e “ilustres”. Não importa se o leitor fica sem conhecer a obra dos mencionados escritores e desconhecem em que consistia a bondade superlativa do doutor Vicente Reis. Era assim que se trabalhava a notícia, em Manaus, na época da borracha.
A cidade, que se modernizava, aparecia nos jornais como “a formosa rainha do rio Negro”, cercada por “um jardim fluctuante de florestas perfumadas, inexploradas e virgens”. Dados objetivos só em anúncios e nos avisos oficiais. Um deles, da Polícia Sanitária intimou o morador Joaquim Costa a “installar caixa de descarga no aparelho sanitário da sentina do prédio n° 38 da Rua Lima Bacury no prazo de 15 dias” (n° 1329 de6/12/1907). Assim ficamos sabendo que uma casa da Lima Bacury era habitada por um – com todo respeito – cagão, que não usava descarga e que o poder público fiscalizava o recesso do lar, invadindo privacidades.
Mas o Jornal do Commércio de Vicente Reis não foi só adjetivo. Trouxe para o Amazonas, de modo pioneiro, o linotipo, sendo o terceiro jornal da América da Sul a incorporar tal inovação tecnológica. Usou fotos quando muitos jornais nem pensavam nisso. Trouxe ainda a entrevista, usada como recurso jornalístico, na forma do discurso direto, aproximando o texto da narrativa oral. Para contar o que houve, o jornalista conta o que ouve.

O burgo podre
Isso que você acaba de ler é apenas pequena amostra da dissertação de mestrado defendida por Priscila Ribeiro no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), nesta quinta-feira, 25 de junho, durante o jogo Alemanha x Estados Unidos. A mestranda leu edições da época, rastreou bibliografia atualizada sobre o tema e dialogou com outros trabalhos produzidos a partir da criação do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas (LHIA).
Foi assim que ela analisou o Jornal do Commercio e discutiu sua contribuição para a modernidade em Manaus (1904-1914), vasculhando as entrelinhas, o texto jornalístico, o projeto gráfico e o que havia por trás dos adjetivos.
A imprensa desse período tinha tudo: só faltava a notícia. É o que mostra a dissertação apoiada em fontes “ricas, fidedignas e reveladoras” diria eu se estivesse contagiado pela adjetivite, uma doença textualmente transmissível.
O excesso de adjetivos não impede, no entanto, que a modernidade fique de bubuia nas páginas do Jornal do Commercio. Lá estão as questões de educação pública com a criação de novas escolas, o surgimento de livrarias, as novas formas de lazer, o teatro, os clubes, os cafés, as práticas esportivas, o advento do cinema, o lixo, o saneamento básico, a insalubridade dos cortiços e das vilas operárias, a moda, o corpo, o consumo, com o anúncio de produtos como “a nova geladeira americana White frost” e as máquinas de escrever.
Tudo isso foi observado pelo olhar atento da pesquisadora, agora mestra, da UFAM que registrou também o rugido do leão nas páginas do jornal. Embora inexistente na floresta amazônica, a imagem do leão foi usada para explicar a modernização da cidade:
“Em pouco mais de uma década de livre acção, o burgo podre transformou-se num leão do norte, no Estado feracíssimo que assombrou o paiz inteiro com a sua grandeza e exportou para a Europa e para a América a mais bela e a mais apreciada borracha do mundo”(n° 647, 18/4/1906)

Para azar do nosso bom portuga, a data da entrega da placa era 15 de novembro de 1889. Com a proclamação da República naquele dia, o comerciante luso hesita em instalar aquela placa, o que poderia soar como provocação para os inimigos da monarquia, autores de quebra-quebra na cidade. O portuga, com medo de sofrer represálias, procura o conselheiro Aires, com quem dialoga.
O conselheiro Aires lhe sugere mandar fazer outra placa: CONFEITARIA DA REPÚBLICA. O portuga, avarento, alega que teria duplo prejuízo caso houvesse uma reviravolta e o Imperador retornasse ao poder. Aires aconselha, finalmente, um terceiro nome para o estabelecimento, que servia para qualquer regime: CONFEITARIA DO GOVERNO. Eis aí o lema de Berinho, o Robério Braga, sempiterno secretário da Cultura. Hay gobierno? Soy a favor.
É isso aí. A imprensa da época era confeitaria do governo, acostumada a usar adjetivos mortais. E hoje?
P.S.- Priscila Daniele Tavares Ribeiro. Jornal do Commercio: construtor e artífice da modernidade em Manaus (1904-1914). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. UFAM. Banca: Maria Luiza Ugarte Pinheiro (orientadora), Almir Diniz de Carvalho Junior e José Ribamar Bessa Freire. A autora estuda a mudança do título definitivo para: De burgo podre a leão do norte – o Jornal do Commercio e a modernidade em Manaus (1904-1914).