Por Ribamar Bessa:

Foi assim. Adair Therezinha Chevonika – a Dada – nascida em Rio Branco do Sul (PR), em 1939, era filha de Elena e Miguel, um agricultor pobre de origem ucraniana. Cursou a Escola Normal e foi dar aula para crianças. Tinha 22 anos quando conheceu Euclides Coelho de Souza, militante do Partido Comunista no Paraná. Casaram, tiveram dois filhos e mais de 500 bonecos, personagens de 120 peças do Teatro de Bonecos Dada (TBD). Viveram tão juntos, que cada um dos dois ficou conhecido como Dada. Ninguém sabia mais onde começava um e onde terminava o outro.
A Dada, o Dada
Embora em 1961 o casal ainda não conhecesse “a nuvem apaixonada“, ambos se inscreveram no curso de alfabetizadores e ali aprenderam a usar o método Paulo Freire com Aurenice Cardoso da Costa e Jomard Muniz de Brito. Convocados pelo Movimento Estadual Contra o Analfabetismo (MECA), organizaram dois cursos experimentais de alfabetização nas favelas de Curitiba. Era um momento de euforia e de efervescência política.
Teatro, eles aprenderam numa oficina para atores ministrada por Gianni Ratto e num curso de fantoches dado por Joel Barcelos e Helena Sanches. Foi aí que a Dada, o Dada e Mirian Galarda encenaram a peça “A União faz a força”, estreando no dia 1° de maio de 1961 no auditório do Teatro Guaíra, ainda em construção. Logo criaram o setor de Teatro de Bonecos do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) e, no natal do mesmo ano, se apresentaram numa praça do Bairro do Portão e na Casa do Pequeno Jornaleiro.
Convidado para participar da UNE-Volante pelo então vice-presidente da UNE, Marco Aurélio Garcia, atual Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Dada ajudou a disseminar os Centros Populares de Cultura (CPCs) pelo país e se engajou de corpo e alma no processo de alfabetização de adultos, com os bonecos facilitando a entrada dos alfabetizadores nas comunidades da periferia. Os dois Dada estavam convencidos do poder transformador da arte.
A Dada ganhou uma bolsa de estudos. No dia do golpe militar, 1° de abril de 1964, ela se encontrava em Moscou, no Teatro Kuklo, onde aprendia novas técnicas de confecção e manipulação com o renomado titiriteiro Sergey Obraztzov. O Dadá estava em Paranaguá, no Sindicato dos Ensacadores, invadido pelos militares, que lhe confiscaram tudo. Um foi encarcerado na prisão do Ahu, a outra ficou retida no frio de Moscou, de onde enviou um boneco de luva – um coelhinho – que, com o nome de Dada, se tornou o apresentador dos espetáculos, quando veio a relativa calmaria, já em 1965.

Nenem subversivo
Logo que regressaram à Curitiba, pretendiam encenar “A nuvem apaixonada“, mas a polícia fechou o Jardim da Infância Pequeno Príncipe, acusando-os de “ensinar subversão a crianças de três anos”. A notícia, com repercussão nacional, mereceu crônica de Stanislaw Ponte Preta – O Garotinho Subversivo – com destaque no FEBEAPÁ – Festival da Besteira que Assola o País. O casal deixa o Paraná e leva o teatro para Brasília onde dá espetáculos ambulantes nas cidades satélites, enquanto a Dadá, que fez concurso, leciona na Escola Parque. Em 1968, nasce o filho André Luiz.
Logo após o sequestro do embaixador norte-americano, em outubro de 1969, saiu a sentença: quatro anos de prisão para o casal Dada. Duas dezenas de pessoas condenadas, mas na identificação da ação judicial, como de praxe, constava apenas o nome de uma delas: “Processo contra Adair Therezinha Chevonika e outros“. Visto assim, para um leigo, parecia até formação de quadrilha, encabeçada por Adair, mas ela e “os outros” eram apenas alfabetizadores, cujos bonecos ensinaram trabalhadores a ler e escrever.
A residência dos Dada foi invadida, a polícia destruiu tudo: palco, cortinas, cenografias, refletores, ferramentas, máquinas de costura, bonecos, inclusive Eva, uma boneca de espuma presente de Sergey Obraztzov, que foi decapitada. O casal, obrigado a deixar o filho com a avó em Curitiba, saiu clandestinamente para o Chile. Foi aí que eu, com 21 anos, conheci os dois e me juntei ao TBD, sem nunca antes ter visto um espetáculo de bonecos. Do Chile, fomos juntos ao Peru.
Um belo dia deixei-os confeccionando bonecos na garagem de uma casa onde vivíamos. De noite, quando voltei, eles estavam ensaiando detrás de um palco de alumínio feito por Paulo e Marcos Egler, também exilados, e não perceberam minha presença. Foi o primeiro espetáculo de bonecos que assisti na minha vida. Com assombro, vi desaparecer, diante de meus olhos, um enorme queijo comido por milhares de ratos, manipulados por apenas duas pessoas. Puro encantamento! Fiquei fascinado e atravessei para trás da cortina, me incorporando definitivamente ao Teatro de Bonecos Dada.
A nuvem apaixonada
Em Lima, encenamos diversas peças no Teatro de Miraflores, numa aventura em que aprendi mais sobre arte, política e gente do que em todo meu curso universitário. Uma delas era a versão da Chapeuzinho Vermelho do francês Jean-Loup Temporal, que relativiza valores como bondade e gratidão. Uma brasileira residente em Lima, amiga do embaixador, adorou a peça e organizou apresentação no Centro Cultural da Embaixada do Brasil. Fomos tratados como grupo em excursão pela América do Sul, se soubessem que éramos exilados nos escorraçavam. Por isso, adverti ao sair de casa me referindo ao Centro Cultural Brasileiro:
– Temos que ter cuidado, porque essa porra deve estar cheia de policiais.

– Essa porra deve estar cheia de policiais.
Estava mesmo. Nunca mais nos convidaram. Felizmente o casal Dada recebeu a solidariedade efetiva de Victoria (peruana) e Gastón Aramayo (boliviano), do grupo Kusi-Kusi, que com eles fundaram o Teatro y Escuela de Títeres. Lá encenavam peças e davam cursos de teatro de bonecos, formando novos titiriteiros. Depois de quase cinco anos no Peru, com a prescrição da pena, regressaram ao Brasil onde, em fevereiro de 1977, Adair deu à luz uma menina, Ana Inez.
Retomaram os espetáculos no Teatro Guaíra, no Teatro do Piá e em centenas de escolas do Paraná, com critica elogiosa no Jornal do Brasil, assinada por Ana Maria Machado. Durante meio século, o TBD participou de festivais de marionetes na França, Alemanha, Hungria, Romênia, Rússia, China, Japão. No Festival Internacional de Charleville-Mezières, em 1982, encenaram “El sueño del pongo“, um conto andino do escritor peruano José Maria Arguedas, com tradução simultânea ao francês feita por ex-integrante do grupo, um certo José Freire Bigodinho.
No início do presente ano, a Dada voltou ao Peru com André para recolher seus passos. Em 21 de março, Dia Mundial do Títere, recebeu homenagem dos colegas peruanos, depois de haver, finalmente, montado em Curitiba a peça “A Nuvem apaixonada” do poeta turco Nazim Hikmet, militante comunista encarcerado por mais de 23 anos. A peça, traduzida do francês ao português por Nadia Podleskis, conta a história de um homem malvado que destrói o jardim de flores cultivadas por uma menina. Ela pede ajuda a uma nuvem que se dispõe a protegê-la, fazendo chover para regar o jardim.
– Não faça isso, você é água, se chover, você deixa de existir – lhe adverte uma voz.
Mas a nuvem, apaixonada, chora e chora, vai sumindo, sumindo, fertilizando a terra com suas lágrimas. Começam a nascer flores. O jardim renasce. A nuvem diz:
– A minha não é morte inútil. Morro por uma causa, para que outros vivam.
Morreu na quarta-feira, 11 de dezembro, em Curitiba, Adair Therezinha Chevonika. Durante 50 anos, fez a alegria de milhares e milhares de crianças no Brasil e em vários países da América Latina, apresentando espetáculos em ruas, praças, parques, feiras, sindicatos, quermesses, creches, escolas, clubes, casas paroquiais, barracões, igrejas, circos, garagens, tablados, carrocerias de caminhão e até em presídios, em qualquer lugar onde houvesse uma criança ou um adulto capaz de se encantar com seus bonecos e com as histórias por eles narradas.
Cheguei atrasado a seu funeral, mas a tempo do último adeus. Adair Therezinha Chevonika estava lá, nas histórias que rememoramos com o Dada e André, companheiros de exílio. Embora a diferença de idades entre nós fosse de apenas oito anos, ela me chamava de “meu filho”, que era uma forma de proteger o órfão que todos somos no exílio. Deixa saudades.