A VENEZUELA DO TIO SIMÓN

Por Ribamar Bessa:
“Españolito que vienes / al mundo te guarde Dios,
una de las dos Españas / ha de helarte el corazón”.
(Antonio Machado)
As últimas imagens da Venezuela mostram uma sociedade rachada ao meio, metade vermelha, metade branca, sangrando, como se caminhasse para uma guerra fratricida. É mesmo de gelar o coração. Evoca a Espanha de há 80 anos, que acabou destroçada pela Guerra Civil. Os militares fascistas derrubaram a República, um governo eleito, e ocuparam o poder, em 1939, deixando um saldo de 400 mil mortos, plantações incendiadas, igrejas, prédios e monumentos destruídos e famílias dilaceradas. No meio desta tragédia, Espanha tinha poetas lúcidos como Antonio Machado, cuja morte completou 75 anos neste sábado, mas que continua vivo na memória popular. É com poesia e com música que um país cicatriza suas feridas.
E na Venezuela? Quem vai ninar venezuelaninhos recém-nascidos no meio do tiroteio? Quem vai a explicar o que está acontecendo às crianças? O curioso é que o rancor das duas metades atravessa fronteiras.
No Brasil, as pessoas discutem como se estivessem em Caracas, bebendo papelón con limón, o popular refresco de rapadura. As batalhas travadas aqui nas redes sociais reproduzem a virulência de lá. No bate-boca vale tudo: discursos raivosos, ofensas pessoais, xingamentos. José Simão, da Folha de SP, foi espinafrado pelos dois lados porque escreveu no twitter que o presidente Maduro está podre e que a oposição a ele mora em Miami. Sem margem para a esperança.
El llano en llanto
De um lado, os que defendem a legalidade. De outro, os golpistas. O que um ama, o outro odeia e ambos atacam a quem fica equidistante. Fora desta disputa ferrenha, existe uma voz escutada e reverenciada pelas duas Venezuelas, a do cantor e compositor Simón Diaz (1928-2014) que morreu em Caracas, aos 85 anos, neste 19 de fevereiro. Desconfio que as duas Venezuelas compartilham a mesma perda. É que Simón Diaz, unanimidade nacional, era uma espécie de Luiz Gonzaga dos llanos, região de planície banhada por rios caudalosos.
O mundo que Simón Diaz canta é o da Venezuela profunda, da solidão do tropeiro, do arrieiro, do guayabo – saudades da terra – do migrante, da imponente paisagem de savanas, bosques, palmeiras, buritizais, da relação harmoniosa com aves, pássaros, bois, cavalos, bezerros, das relações amorosas, enfim dos temas universais confinados no torrão natal.
Nascido em Barbacoas (Aragua), no norte, ele transita por diferentes gêneros musicais: joropo, pasaje, tonada. Nos anos 1950, acabou migrando para Caracas, levando consigo o llano que é tema recorrente de sua produção musical, assim como a utopia do retorno: “Se minha querência é o monte e a flor de araguaney, como não queres que eu tenha tantas ganas de voltar” (Mi Querencia).
Em Caracas, Simón Diaz trabalhou como bancário e estudou música antes de conseguir um programa de rádio El llanero que divulgava a produção musical dele e de outros, especializado em música llanera. Circulou pelo meio artístico como ator em teatro e cinema, contracenando com Cantinflas.
Sua vocação musical o levou à televisão, onde manteve um programa infantil Contesta por Tio Simón no canal estatal entre os anos 1970 e 1980, quando ficou conhecido pelo apelido de Tio Simón. Era algo similar ao Senhor Brasil de Rolando Boldrin ou ao Viola Minha Viola de Inezita Barroso, mas destinado às crianças. O ‘tio’ venezuelano buscava refinar o gosto musical e incutir amor pela música popular nos seus ‘sobrinhos’, alguns dos quais acostumados a pedir benção de outro tio da Disneylândia, o Tio Sam.
Tio Simón
No início da sua carreira fazia como o Patativa do Assaré: improvisava versos e toadas em desafios com cantores, uma das formas mais populares na tradição ibero-americana. Nesta época, seu pai era corneteiro da banda local do povoado de Barbacoas e foi ele quem lhe ensinou o bê-a-bá da música, como Januário fez com Luiz Gonzaga.
A produção musical de Simón Diaz, a partir de suas raízes encravadas nos llanos, tenta recriar esse mundo popular repleto de narrativas, outra das formas tradicionais do gênero. Histórias  tocantes de uma vaca – Mariposa – e seu bezerrinho recém nascido, cujo destino trágico é o açougue. Em outra música, o “Curral de Ordenha”, com linguagem lúdica, ele chama cada uma das vacas pelo seu nome, uma delas,  Melodia: “Foi embora quem te queria, Melodia”.
Personagens que povoam a memória coletiva, como o doidinho do povoado vira poesia na canção de Simón Diaz: Juan Carabina, que de noite conversava com a lua e chorava quando ela não iluminava as noites de San Fernando. Os moradores do alto llano juram que nas noites lunares viam o louco passar de mãos dadas com a lua, que lhe servia de travesseiro em sua cama de névoa fina. Existe uma gravação antológica de Simon Diaz com a cantora venezuelana Cecilia Todd.
Algumas de suas canções circularam no Brasil. Pinduca, o rei do carimbó, gravou no Pará uma versão em português de “Caballo Viejo“, a mais popular fora da Venezuela. Foi um sucesso especialmente entre a chamada terceira idade, que gostou de saber que o cavalo velho, quando está de rédea solta, se transforma num cavalo fogoso:
“E se uma égua se assanha / o cavalo velho resiste / parece cavalo novo / que nunca dá bola à velhice”.
Depois, Caetano Veloso gravou em espanhol a Tonada de Luna Llena, tornando Simón Diaz conhecido de parcela do público brasileiro amante da boa música. É o combate da garça com o rio, que simboliza as tensões próprias das relações amorosas: “assim é como se enamora o teu coração com o meu”. Essa composição serviu de trilha sonora no filme de Almodóvar “A Flor do Meu Segredo”. .
O drama da separação e a universalidade dessa agonia estão na maior parte de suas canções: “Amanhã, quando eu for embora / tu ficarás tão sozinha / Como bezerrinho sem mãe / como um buritizal sem água”. Assim como a luta simbólica por driblar a dor de deixar a savana, uma metáfora da Venezuela: “Eu fico aqui contigo / ainda que vá para muito longe / como a rolinha que voa / mas deixa seu ninho no solo” (Sabana).
Essa talvez seja a imagem mais acabada de desolação da Venezuela que fica agora sem Simón Diaz. “É preciso construir uma pátria nova / Eu fico na Venezuela / Eu fico em Vené / É preciso semear nela”, ele canta em “Me quedo en Venezuela”.
Simón Diaz, que bordou o lhano de amor como o galo quiquiriqui na canção Corazón Pintiparao, morre no momento em que sua querência se encontra fraturada e dividida. Qualquer lado que vença, perde a sociedade. A Venezuela só será outra se vencerem a música, a poesia, o diálogo, a negociação, a querência.
P.S. – Agradeço a dois amigos venezuelanos, linguistas, que conheci em Paris, nos anos 1970: Nidia, que tocava cuatro, um instrumento musical de quatro cordas, e Victor Rago, llanero de Espino (Guárico), que tocava harpa. Eles me abriram as janelas dos llanos, quando me fizeram ouvir pela primeira vez as músicas de Simón Diaz, particularmente Mi llano es un paraíso, de autoria de Augusto Bracca. Com ela, embalei a infância de “uma linda llanerita que me deu seu coração”.