A CRISE DA FEDERAÇÃO E DOS PODERES

A Nova República completa este ano 28 anos. De toda a nossa República e Federação este é o período mais longo de democracia, pleno funcionamento das instituições, nenhuma crise política institucional ou intervenção militar.

Com ela alcançamos a estabilidade econômica e política, com moeda estável e eleições livres e diretas.

Temos, no entanto, debaixo do tapete uma crise da Federação e na relação entre os Poderes. As duas crises estão entrelaçadas.

A primeira, a da Federação, tem origem até cultural. A nossa Federação teve origem na proclamação da República, mais precisamente na espada do marechal Deodoro da Fonseca que transformou as províncias do Império nos Estados membros da República. Ao contrário dos Estados Unidos da América onde a união dos Estados formou a Federação, a nossa foi criada, portanto, de cima para baixo. Por conta disso, de 1889 até 1988, ou seja, cem anos, englobando as quatro primeiras fases da República – República Velha, Era Vargas, República Nova e Regime Militar – a concentração de recursos e poder político predominou nas mãos do Presidente da República.

Contrariando toda essa tradição, a Constituinte de 1988 foi no sentido inverso: descentralização de recursos e responsabilidades da União para os Estados membros e Municípios. A União reagiu a seu modo e na sequencia, as responsabilidades foram descentralizadas, mas os recursos não o foram na mesma proporção. E aí é que mora o perigo.

É sabido que em uma Constituinte quando se organiza o Estado cinco prontos precisam ficar claramente definidos:

– Tamanho do Estado;

– Custo do Estado;

– Quem paga;

– Quem faz o que;

– Divisão dos recursos na proporção das responsabilidades de cada um.

O tamanho do Estado ficou maior do que a carga tributária que, por razões óbvias, aumentou de 24% para 35% do PIB. As definições das responsabilidades chegaram bem próximo de 100% restando algumas zonas cinzentas, principalmente na saúde e meio ambiente. O problema reside exatamente na divisão dos recursos. A União, ao ampliar a carga tributária, agiu em detrimento dos Estados e Municípios com o objetivo claro de subjugar Governadores e Prefeitos. Mais ainda: gerando a discórdia entre eles.

São exemplos: a legislação do ICMS que gerou a guerra fiscal; a partilha dos recursos, em especial o FPE; e a divisão dos royalties. Estados e Municípios brigam entre si, o Poder Central estimula a disputa e assiste como se nada tivesse a ver com isso.

Já a crise entre os Poderes – Executivo, Judiciário e Legislativo– com o Legislativo no canto da parede apanhando dos outros dois, decorre em grande parte da omissão e submissão deste último.

Um parêntesis: conta a lenda que o Legislativo é o Poder sem chave. O Executivo tem a chave do cofre e o Judiciário da cadeia. Já o Legislativo não tem chave alguma.

Voltando ao tema principal.

As medidas provisórias impuseram a pauta do Executivo sobre o Legislativo que, além disso, encontra-se subjugado ao Executivo que por meios e modos construiu maiorias folgadas. Por tudo isso, o Legislativo não tem agenda, não cumpre o seu papel e se omite. Como não há espaço vazio em política, o Executivo atropela o Legislativo por um lado, através das MP, e o Judiciário, por outro, assume a condição de legislador e, inclusive, dita prazos e condições ao Congresso Nacional.

Três exemplos: a pauta de votação dos vetos, o FPE e manipulação do ICMS pelos Estados.

VETOS – O Congresso regulamentou a divisão dos royalties do petróleo entre os Estados. A Presidente Dilma vetou artigos que prejudicavam os Estados produtores. O Congresso decidiu colocar o assunto em pauta, de imediato, com base na máxima de que “o plenário é soberano”. Os prejudicados recorreram ao STF alegando que existiam mais de 3.000 vetos pendentes de votação desde quando Itamar Franco foi presidente (1994). O Ministro Luiz Fux, carioca da gema indicado pelo Governador do Rio Sérgio Cabral, atendeu ao pedido e determinou que fosse seguida a ordem cronológica. O senador Pedro Simon reagiu perguntando por que o STF não adotava o mesmo critério. É que existem milhares de processos dormindo nas gavetas do STF embora sejam mais antigos do que outros, patrocinados por grandes escritórios, que já foram julgados. O STF comeu abiu verde.

FPE – O Fundo de Participação dos Estados é formado por um percentual sobre a arrecadação federal de IPI e IR. Foi consolidado na CF/88 que mandou seguir os critérios de rateio da Constituição anterior pelo prazo de um ano quando seria regulamentado por Lei Complementar. No final de 1989 foi aprovada a Lei Complementar nº 62 que estabeleceu percentuais valendo até 31.12.1991, prazo no qual deveria ser elaborada nova LC, o que não aconteceu. Passaram-se 20 anos de omissão do Congresso Nacional, mas também do Ministério Público que tem uma tradição de se omitir nas questões federativas e nada aconteceu. Lamentavelmente. O STF em 2010 decidiu que até 31.12.2012 o Congresso Nacional deveria regulamentar a matéria, o que não foi feito. A Presidente Dilma mandou que continuasse a partilha nos moldes anteriores. E o Ministro Gilmar Mendes, o relator da questão no STF, deu entrevista dizendo que é ilegal e inconstitucional a distribuição sem a lei. A questão, no entanto, é de ordem prática: os Estados não conseguem sobreviver sem esse repasse constitucional.

ICMS – Constitucionalmente 25% do ICMS arrecadado pelos Estados pertencem aos Municípios. Alguns Estados, Amazonas inclusive, pelas mais variadas formas terminam ficando com parte desses recursos. Alguns Municípios foram à Justiça e chegaram até o STF que reconheceu o direito. Na sequencia decidiu editar uma Súmula Vinculante, a de nº 30, que diz:

“É inconstitucional lei estadual que, a título de incentivo fiscal, retém parcela do ICMS pertencente aos municípios”.

Aprovada por dez votos a um e já caminhando para o final da sessão, eis que foram interpostos “Embargos Auriculares” perante o Ministro Dias Tofolli que resolveu pedir vista para, segundo ele, melhorar a redação. Isso ocorreu em 04.02.2010. De acordo com o Regimento Interno do STF ele tinha que devolver o processo na segunda sessão seguinte. Portanto, no máximo, dez dias depois, mas hoje decorridos mais de 1.000 dias ainda não o fez. Resultado: já temos a Súmula Vinculante de nº 32 e não temos a de nº 30. Claro que os Ministros do STF merecem respeito, mas convenhamos, o que podemos dizer do Ministro Tofolli? E dos presidentes do STF desde quando o fato aconteceu até hoje? São cumpridores de prazos? A quais interesses estão servindo já que existem bilhões em jogo? Se fossem membros de outro Poder, por certo, seriam omissos e prevaricadores. Cada um tire suas conclusões.

Essas são crises que precisam ser resolvidas e dependem de diálogo e entendimento. O problema é que faltam interlocutores. O Congresso de hoje ressente-se da presença de políticos com o perfil e tamanho de Ulisses Guimarães, Petrônio Portela, Mário Covas, Jefferson Péres e Tancredo Neves. Sem interlocutores não há diálogo e sem ele não haverá solução.

E convenhamos que os prováveis próximos presidentes do Senado e da Câmara, Renan Calheiros e Henrique Alves, não têm esse perfil.

Daí, a crise vai continuar. Espera-se que, pelo menos, não mais debaixo do tapete.