JOHN, UM NEGRO DA TERRA

Por Ribamar Bessa:
Ele nasceu, em 1956, nos Estados Unidos. Era americano. Portanto tinha, inapelavelmente, que se chamar William ou John. Ficou John. Mas por ser filho de português, seu destino era ser registrado como Manuel ou Joaquim. Acabou herdando o Manuel do pai. E foi com esse nome composto – John Manuel – que veio de mala, cuia e Machado para o Brasil, onde criou raízes, filhos, livros e deixou marcas.
Aqui deu aulas, palestras e conferências, organizou eventos, iniciou estudantes na pesquisa, formou mestres e doutores, fez discípulos, vasculhou arquivos, pesquisou, escreveu, publicou, amou e foi amado, apaixonou-se pela história indígena e abrasileirou-se tanto que se transfigurou em negro da terra, termo consagrado em um de seus livros sobre índios e bandeirantes.
Foi ironicamente na Rodovia Bandeirantes, em Campinas, na terça-feira, que um táxi desgovernado chocou o carro dirigido por John, eliminando um dos expoentes da história indígena. Ele morreu no local, aos 56 anos, no auge de sua vida intelectual, vítima da guerra absurda do trânsito, que no Brasil mata anualmente mais do que qualquer guerra civil. Na última quinta-feira, 28 de março, depois de velado no salão da biblioteca, na Unicamp, foi levado para o Crematório na Vila Alpina, em São Paulo.
Índios e bandeirantes
O historiador John Manuel Monteiro era paulista, mas paulista de Saint Paul, Minnesota, onde nasceu. Lá, muitos moradores descendem de alemães e escandinavos, que migraram para os Estados Unidos no final do século XIX, encurralando a população nativa em reservas indígenas, que hoje sediam cassinos. Quando os portugueses e hispânicos chegaram, os índios já eram minoria discreta, mas capazes ainda de despertar o interesse de um pesquisador sensível e generoso como John, um paulistano de coração.
Desde a graduação em história, no Colorado College (1974-78), ele vinha buscando entender o processo de colonização portuguesa nos trópicos, inicialmente em Goa, na Índia, e depois no Brasil. No mestrado (1979-1980), focou seu interesse sobre o Brasil Império, no século XIX, e finalmente no Doutorado (1980-1985) na mesma Universidade de Chicago, debruçou-se sobre a escravidão indígena, os bandeirantes e os guarani de São Paulo.
Quando o conheci, em 1992, apresentado por Manuela Carneiro da Cunha, ele trabalhava com ela num grande projeto interdisciplinar, de âmbito nacional, que procurava localizar, mapear e avaliar a documentação manuscrita sobre índios existente nos arquivos de todo o Brasil. Fui convocado para coordenar a equipe do Rio de Janeiro. Com John, entramos em cada um dos 25 grandes arquivos sediados no Rio. No final, ele organizou a publicação do Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em Arquivos Brasileiros.
O objetivo do projeto era criar uma ferramenta para combater a cumplicidade da historiografia brasileira que “erradicou os índios da narrativa histórica” ou tentou “torná-los invisíveis”. O Guia foi elaborado por equipes que reuniu mais de cem pesquisadores em todas as capitais do país, coordenados por John Monteiro. Localizou muitos documentos desconhecidos e até então inexplorados, criando as condições para “repensar, de forma crítica, tanto o passado quanto o futuro dos povos indígenas neste país”.
John Monteiro trazia considerável experiência em pesquisa documental nos arquivos das Américas, da Europa e da Índia. Publicou, em 1994, o livro seminal Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. Lá, apoiado em farta documentação, redimensiona o papel dos índios na história de São Paulo e desconstrói a baboseira de que o bandeirante paulista contribuiu para alargar e povoar o território brasileiro. Recoloca na história do Brasil, como sujeito, o negro da terra ou gentio da terra, expressão usada para designar o índio escravizado.
Dança dos números
As pesquisas de John Monteiro fizeram uma revisão profunda do discurso sobre a “extinção”, mostrando como as populações indígenas foram afetadas pelo colonialismo. Ele discute não apenas o declínio demográfico, mas também “os processos de recuperação e rearranjo das populações e das unidades políticas indígenas” no Brasil colonial. O artigo que publicou em 1994 – a Dança dos Números: a população indígena do Brasil desde 1500 – trabalha com a noção de etnocídio, a qual acrescentou posteriormente a de etnogênese.
Logo após a promulgação, em 2008, da Lei 11.645, que torna obrigatória a temática indígena em sala de aula, John Monteiro publicou o artigo Sangue Nativo na Revista de História, abordando a escravização dos índios no Brasil. Contribuiu, dois anos depois, com a produção de documentários “Histórias do Brasil’, exibidos pela TV Brasil. Desta forma, sua produção acadêmica alcançou os professores da rede pública e privada de ensino e penetrou nas escolas.
John Monteiro havia assumido recentemente a direção do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp. É conhecido, admirado e querido em todo o Brasil, em cujas universidades seus livros são discutidos, mas também no exterior. Orientou e dirigiu pesquisas na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e foi professor em várias universidades americanas – Harvard, Michigan e North Carolina-Chapel Hill (1985-86), onde nasceu Thomas, seu filho com Maria Helena Machado, pesquisadora da USP e companheira de todas as horas.
No Grupo de Trabalho Índios na História, que John Monteiro articulava, sua morte foi sentida e pranteada. Mensagens de todos os recantos circularam nas redes sociais, expressando sentimento de dor pela perda irreparável. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Nacional de História (ANPUH), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), entre outras, manifestaram o pesar da comunidade acadêmica:
“À sua esposa Helena e aos filhos Álvaro e Thomas, e demais familiares, estendemos nosso conforto e afeto. John será sempre lembrado por nós” – finaliza a nota da ABA, expressando um sentimento generalizado.
Aqui, no Diário do Amazonas, registramos um adeus saudoso a John Monteiro, reproduzindo mensagem do antropólogo Carlos Alberto Dutra, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul:
– Os povos indígenas perderam o historiador John Monteiro. Cientista social que sempre soube respeitá-los e traduzir para o mundo, para além das fronteiras da modernidade, suas lutas e seus direitos, pelos meandros da academia, seus livros e ensino. Que Ñhanderu o acolha e console seus admiradores pela perda.