O papel da esquerda 20 anos após a Queda do Muro

A Queda do Muro de Berlim completou 20 anos nesta semana.

A data histórica levou os veículos de comunicação a produzirem inúmeros textos a respeito do assunto.

De relatos de ontem e de hoje sobre a vida na Alemanha a análises sobre o regime comunista, foi grande o material veiculado.

Mas poucas as reflexões profundas sobre a crise de modelos que enfrentamos atualmente.

Sob esse prisma, uma das entrevistas mais interessantes que li foi concedida pelo historiador britânico Eric Hobsbawm e publicada pelo caderno Mais! da Folha de S.Paulo (8/11).

Conversei com este que é um dos maiores nomes da historiografia sobre Lula, Brasil e Cuba na primeira quinzena do mês passado, quando participamos nos dias 9 e 10 de outubro do Fórum Político Mundial promovido pela Fundação Gorbatchev, em Bosco-Marengo (Itália).

A lucidez e profundidade de sua análise são impressionantes.

Na entrevista, Hobsbawm fala dos significados econômicos e políticos de 1989.

Segundo o historiador, “a queda do Muro de Berlim apenas demoliu a crença de que o socialismo de corte soviético (economia planificada comandada por um Estado centralizador que eliminou o mercado e a iniciativa privada) era uma forma factível de socialismo”.

Além disso, ressalta que, de um lado, os EUA tiveram a ilusão de que poderiam impor sua hegemonia ao mundo, e, de outro, a desilusão da esquerda com a derrubada do muro inibiu a difusão das idéias socialistas, ainda que houvesse crítica ao sistema soviético.

Ora, a avaliação de Hobsbawn nos leva à conclusão de que as consequências desse duplo efeito da Queda do Muro foram as receitas neoliberais, cuja cartilha criou raízes profundas na América Latina -em especial, no Brasil- e ergueu outros muros, ainda mais altos que o de Berlim, separando incluídos e excluídos do perverso sistema.

Mas os ditames dessa cartilha também entraram em colapso com a crise financeira iniciada em 2008, a mais grave desde a Quebra da Bolsa de Nova York, em 1929.

Este momento que vivemos é chamado por Hobsbawn de “uma espécie de Queda do Muro para a ideologia neoliberal”.

Além do que a observação histórica nos ensina, uma pesquisa encomenda pela BBC e realizada recentemente pela Globescam/PIPA (que faz pesquisa de opinião em nível mundial) revela um grau inédito de insatisfação com o capitalismo, exatamente 20 anos depois da Queda do Muro.

Nos 27 países pesquisados, 51% das pessoas consideram que os problemas do mercado livre no capitalismo devem ser resolvidos com maior regulação e reformas.

O levantamento mostra que, em 15 países, os cidadãos defendem que o governo devia ser mais ativo no controle das empresas nacionais e as veem sob risco de desnacionalização.

Em 17 países, a opinião majoritária é a de que o governo deve atuar mais para regular os negócios.

No Brasil, esse é o pensamento de 87% dos cidadãos pesquisados.

E dois a cada três cidadãos brasileiros, em média, acham que as riquezas devem ser distribuídas de forma mais justa e que esse papel cabe ao governo.

Vejam que se, há 20 anos, começamos a deixar de lado a dicotomia entre os EUA e a antiga União Soviética, há um ano, começamos a perceber que é preciso encontrar saídas às propostas de “todo poder ao mercado”.

Esse é o nó que foi deixado de lado por grande parte da mídia ao abordar 1989.

Vivemos um momento de reabertura das perspectivas para a esquerda. Nossa preocupação deve se voltar ao mundo que queremos construir nos próximos 20 anos.

Se a Queda do Muro representou a derrocada de um sistema, não dá para esconder que as idéias que motivaram a instauração do regime socialista permanecem latentes em cada um de nós: igualdade de oportunidades, justiça social, condições de vida dignas, solidariedade, fim da exploração do homem pelo homem.

Tal ideário unifica o ser humano e as nações. Por isso, deve ser concretizado.

Caso contrário, o fosso que separa os poucos que muito têm e dos muitos que quase nada possuem será aprofundado. Na construção dessa sociedade, há muitos muros e mitos para derrubar.

Mas hoje, certamente, reunimos as condições necessárias para saber que cabe à esquerda o papel de conduzir esse processo de transformação.

José Dirceu, 63, é advogado e ex-ministro

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