Acabou a beleza

Quem acompanha o processo eleitoral presidencial nos EUA percebe encantamento e beleza: as prévias eleitorais têm uma coreografia de meses. A transferência do cargo mais poderoso do planeta, feita por juramento e aperto de mão, em função apenas dos votos apurados, é um ato político, mas com forte carga estética.

A democracia se mantém graças à confiança pública nos líderes ungidos pelo voto, mas também pela beleza que ela apresenta. Basta comparar a beleza da paz na democracia com a feiúra da violência implícita das ditaduras. Quando a democracia perde beleza, ela perde legitimidade e se enfraquece. É o que está ocorrendo com a democracia brasileira: está ficando feia.

A primeira manifestação de feiúra está na corrupção, com o roubo direto ou a locupletação de recursos públicos sob a forma de vantagens pessoais. Essa é a feiúra da corrupção no comportamento dos agentes do poder público.

A segunda feiúra é menos visível: a corrupção nas prioridades. Dinheiro público não é roubado para o bolso de um político, mas é investido para beneficiar somente a parcela privilegiada da população, em prejuízo das parcelas pobres. Ao longo de nossa história, a democracia brasileira carrega esta face feia: os recursos são desviados, enfeando a cara do país e comprometendo seu futuro.

O melhor exemplo está na escola pública. Para saber se um país será bonito ou feio no futuro, basta olhar para a cara de sua escola pública no presente: seu prédio; o salário, a formação e a dedicação de seus professores; a eficiência de seus equipamentos. A escola pública feia é prova da falta de beleza da democracia brasileira, por causa da corrupção nas prioridades ao longo de séculos. A saúde pública, com suas filas à espera de atendimento e seus serviços precários, é outra parte feia do nosso sistema social criado pela feia democracia brasileira.

Mas é na própria política que está a parte mais visível da feiúra da democracia brasileira. Eleições manipuladas pelo dinheiro e pelo marketing reduzem a beleza da coreografia que deveria caracterizar a democracia. O divórcio entre compromissos de campanha e ações no exercício do poder impede o Brasil de viver a beleza das idéias que fluem de um debate amplo e aberto entre todos os candidatos. Esse divórcio também compromete a beleza que viria da confiança dos eleitores. O vazio de propostas e de bandeiras alternativas e a descaracterização dos partidos igualam os candidatos, tiram do eleitor o poder de mudar o País e destroem o encanto da democracia.

Nos dias de hoje, é principalmente no Senado que a beleza da democracia está mais arranhada e feia.

O Senado deveria ser a parte mais bela da democracia, como foi na Roma antiga. Como foi no Brasil, durante o Império, na figura de nomes como José Thomaz Nabuco de Araújo, Rui Barbosa. Beleza coroada com a votação da Lei da Abolição e, recentemente, com a batalha pela democracia, a partir de 1978, com senadores como Pedro Simon, Marcos Freire, Paulo Brossard. Foram tempos de beleza, na coragem dos senadores, no conteúdo dos discursos, no brilho das propostas. Nesses últimos anos, perdemos o brilho e a beleza, deixamos de iluminar o Brasil. Tornamo-nos símbolo do lado feio da democracia. E o público reage com críticas e até com sugestões de fechamento.

A nós, senadores, resta a obrigação de recuperar o lado bonito do Senado, sem o que a democracia não merece – nem consegue – sobreviver, dando lugar a feiúra explícita das ditaduras, com militares armados ou políticos carismáticos.

O Senado brasileiro atual precisa assumir o erro de todos e a culpa de alguns; punir os culpados e corrigir os errados. Precisa, sobretudo, se reorganizar, fazer uma reestruturação e adaptar-se à realidade do mundo atual, assumindo o papel de parteiro de um novo Brasil que precisa nascer: o Brasil do conhecimento, da distribuição, da sustentabilidade. Todos sabem o que deve ser feito; falta a consciência de que perdemos a beleza e de que, sem ela, a democracia fica ameaçada.

Cristovam Buarque é senador pelo PDT/DF.

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