Atentados contra o dever do sigilo

As notícias sobre corrupção, não raro com tintas de espetaculosidade, vêm assumindo proporção inquietante nas matérias veiculadas pela mídia brasileira. Tal fato aponta para um perigoso estágio de banalização do tema. Segue-se uma percepção de impunidade que produz indignação e desconfiança na opinião pública. Integra, ainda, esse lamentável cenário um pífio ou torpe desempenho de uma representação política, cuja qualidade é declinante, com evidências cada vez mais fortes de participação de embusteiros e delinqüentes de todos os gêneros.

Essas notícias, infelizmente, abrigam, em boa medida, investigações malfeitas ou inconclusas, perseguições políticas e pessoais, suspeitas infundadas e outras iniqüidades. Por mais absurdo que venha a ser, diz-se, com freqüência, que a polícia prende e a Justiça solta, como se a prisão não decorresse de uma decisão judicial.

Mais grave é a profusão de matérias que encerram processos nos quais a autoridade judicial ou a própria lei conferiu tratamento sigiloso. Com absoluta naturalidade, essas matérias alardeiam o acesso que o repórter teve a processos que correm em segredo de justiça. São divulgados diálogos obtidos por meio de interceptações telefônicas, com o pitoresco cuidado de ressalvar que elas foram feitas com autorização judicial. Evidentemente, a autorização foi dada para instruir um procedimento investigatório e não para divulgar os diálogos – mormente quando a investigação sequer está concluída. Trata-se de um caso típico de extensão negligente de raciocínio.

A simples veiculação da matéria equivale, para a opinião pública, a uma condenação, pouco importando a qualidade ou a motivação do procedimento investigatório. Desse modo, quando o processo resulta na absolvição dos acusados ou inexiste denúncia a apresentar, gera-se uma percepção de impunidade, que, de resto, constitui estímulo a práticas delituosas.

Além disso, a referência à natureza sigilosa de determinado processo transmite a impressão de que se trata de algo degradante. Paradoxalmente, o sigilo que deveria proteger a honra das pessoas passa a produzir efeito contrário, em virtude de um clima generalizado de desconfiança, especialmente em relação a autoridades ou políticos.

Nesse grotesco quadro, constata-se um sepulcral silêncio quanto às violações do sigilo funcional. O Código Penal, no art. 325, tipifica essa prática como crime, sujeitando o infrator, conforme o caso, à pena de detenção de seis meses a dois anos ou à de reclusão de dois a seis anos. Inexistem, todavia, iniciativas para apurar o delito. Estabelece-se uma espécie de condescendência coletiva. A honra alheia, no caso, torna-se órfã da indispensável tutela do Estado.

Preocupa-me, também, o que agora vejo em relação à quebra ilegal do sigilo fiscal de contribuintes. A situação fiscal de empresas tem sido fartamente noticiada, nas últimas semanas, em aberta desobediência ao que prescreve o art. 198 do Código Tributário Nacional. Não bastasse o próprio dever de sigilo, não se deve esquecer que muitas empresas têm ações em bolsa e que a irresponsável divulgação de sua situação fiscal pode ter repercussões desastrosas.

Foi penosa a construção de regras que facultaram acesso do fisco a informações protegidas por sigilo bancário. A aprovação da Lei Complementar nº 105, de 2001, que facultou tal acesso, foi precedida de um longo trabalho de convencimento da sociedade e dos parlamentares. Em contrapartida, a responsabilidade no trato da matéria se expressava em regras que puniam o acesso imotivado a dados sigilosos e estabeleciam ritos extremamente severos no tratamento daquelas informações. A despeito de tudo, ainda tramita, no Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada contra a referida lei complementar.

A falta de zelo no acesso a dados sigilosos e os vazamentos criminosos de informações fiscais podem concorrer para uma apreciação restritiva do Judiciário nas ações em andamento, sem falar nas demandas por danos morais e na possibilidade de utilização dessas informações pelo crime organizado. No México, recentemente, onde o fisco lida com um volume muito menos expressivo de dados fiscais, quadrilhas lograram acesso a eles, passando a utilizá-los em atividades de extorsão por seqüestro.

O indispensável combate à corrupção, à sonegação e a outros ilícitos não autoriza a prática de outros atos igualmente criminosos, sob o pretexto de uma deplorável torpeza bilateral. Atentado à honra de um cidadão justo é algo quase irreparável. O Ministério Público não pode continuar indiferente diante desses crimes. Caso contrário, continuaremos súditos do subdesenvolvimento moral e vítimas do terrorismo de Estado.

Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal

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