Subversão do dicionário

Mais de uma vez o presidente Lula jantou em minha casa, antes de assumir a Presidência. Naquelas ocasiões, gostaria de ter lhe servido pizzas feitas por mim, e que ele tivesse me chamado de um bom pizzaiolo. Usando a palavra como substantivo que se refere a quem faz pizza. Mas sou incompetente para a cozinha: não mereço ser chamado de pizzaiolo. Entretanto, não gostei de vê-lo chamando os senadores de pizzaiolos, usando essa palavra como se fosse um adjetivo para indicar político que acoberta malfeitos e engana o povo. Como político, não me senti atingido, porque nunca participei de qualquer CPI; portanto, nunca fiz “pizzas”, não sou “pizzaiolo”. Mas, como educador, senti obrigação de me manifestar diante da infeliz declaração do presidente.

O presidente corrompeu o dicionário, como no passado outros fizeram usando “barbeiro” como sinônimo de mau motorista, “açougueiro” como sinônimo de assassino feroz, “poeta” como sinônimo de lunático. Nenhum barbeiro reclama quando se usa seu substantivo de ofício como adjetivo pejorativo, nem os poetas, nem os açougueiros, porque eles não se sentem atingidos, sabem que a palavra tem significados diferentes.

Os pizzaiolos, entretanto, reclamaram, corretamente, porque foram surpreendidos com esse novo significado para adjetivar o senador pizzaiolo: aquele que acoberta corrupção. Se tivesse partido de outra pessoa, era possível que o significado adicional não prosperasse, mas vindo do presidente da República, o termo vai adquirir esse novo significado. Esta é a gravidade do uso da palavra pelo presidente: porque ele faz opinião.

Por essa razão, foi preciso que alguns senadores protestassem. Não por serem elogiados como fabricantes de pizzas, mas por serem desmoralizados com fabricantes de mentiras. Seria o mesmo que, aproveitando a crise moral do Senado e de muitos senadores, o presidente usasse a palavra senador como adjetivo de pizzaiolo sem competência para fazer boas pizzas, ou aqueles que enganassem os clientes fazendo pizzas diferentes da descrição no cardápio.

Como educador e democrata, protestei porque, vindo do presidente da República, a crítica generalizada ao Senado corrompe a opinião pública, especialmente a juventude e as crianças, ao desmoralizar as instituições republicanas. Ao generalizar, ele passou da crítica aos senadores à crítica a uma das casas do Congresso. E a população, os jovens, as crianças passam a respeitar ainda menos o Senado, já desmoralizado pelo comportamento dos próprios senadores. A sociedade diminui seu compromisso com a democracia: o presidente deseducou o povo.

Para o bem ou para o mal, o presidente da República é o principal educador de um país. O que ele diz forma conceitos. Ainda mais quando o presidente tem carisma e popularidade. É uma pena que, ao seu lado, não haja quem o alerte para essa imensa responsabilidade que ele tem. Talvez porque, prisioneiros dos cargos e do respeito que, hoje em dia, beira o endeusamento, as pessoas ao seu redor se acovardam ou perdem o sentido republicano. Criou-se a ideia de que criticar o presidente Lula é um suicídio político. Os intelectuais se calaram, os sindicatos se acomodaram, os políticos se enquadraram.

Por isso, é preciso alguém chamar-lhe atenção, mesmo que isso signifique o suicídio político de quem toma a iniciativa. Afinal, se antes se morria lutando pela democracia, muito mais se justifica a derrota política em defesa da república e da educação dos jovens e das crianças.

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