Enchente

Convoquei a Comissão Externa do Senado para vir ao Amazonas, com a máxima urgência, verificar de perto a situação da enchente. Quando ocorreu a lamentável tragédia provocada pelas chuvas em Santa Catarina, no mês de novembro do ano passado, o País se mobilizou em socorro das vítimas. O Governo Federal disponibilizou recursos. As Forças Armadas intervieram. Agora, o Brasil precisa conhecer a realidade dura do caboclo, as casas sob maromba, os animais domésticos perdidos, a convivência com serpentes.

Maromba. Eis aí uma palavra emblemática. Entre os quatro registros no dicionário Houaiss – onde a palavra é válida até para a pessoa que faz muita ginástica, o “marombeiro” -, aparece: “Regionalismo: Norte do Brasil. Manada de bois. 2- Regionalismo: Amazonas. Estrado de madeira sobre o qual fica o gado, no inverno, para se proteger das enchentes”.

Nenhuma referência à maromba no sentido em que nós a conhecemos, o assoalho de madeira da casa que vai subindo, subindo, subindo, acompanhando as águas, até que o caboclo só consegue entrar deitado. Um símbolo de heroísmo. Ao mesmo tempo, uma demonstração de apego ao lugar onde mora e da forma precária, improvisada, indigente mesmo, com que vive o homem responsável por tornar o Amazonas o Estado menos devastado do planeta, o local onde a Floresta Amazônica está 98% preservada.

A enchente é um verdadeiro banho cultural. Estou trazendo os senadores para que venham se banhar nessa realidade.

É um momento em que somente os especialistas conseguem capturar algum peixe. Pescador amador desiste logo. A indústria da pesca recorre aos enormes e depredadores arrastões. O caboclo não. Munido de um pequeno caniço, ele descobre o peixe sob a canarana, o capim que recobre as margens dos lagos durante a cheia. Canarana, aliás, que é a mais eloquente demonstração da força da terra de várzea, ao crescer pujante nos primeiros sinais de água, denunciando a incapacidade governamental de utilizar esse instrumento para alimentar o mundo com grãos.

Esse interiorano amazonense, do alto da sabedoria acumulada em muitos anos de sobrevivência, recusará com unhas e dentes qualquer oferecimento de uma casa confortável na cidade, em troca daquela na maromba. Sabe que sua presença é o único marco de propriedade do pedaço de terra-água onde vive, mesmo que momentaneamente submerso. Até hoje, lamentavelmente, não há estudos suficientes para apontar uma solução fundiária nas várzeas, valendo somente o usucapião, com as autoridades resistindo em titular uma terra que vira um mar de água doce todos os anos.

O ribeirinho prefere, matreiramente, esperar pela seca – que sempre é grande, após uma cheia como essa, conforme aprendi das conversas com eles -, à frente da “concorrência”, mais perto dos locais onde o peixe abundará em breve.

As marombas, separadas umas das outras por quilômetros, são ilhas de desolação, resistência e esperança, perdidas no grande alagado.

Cheia tem todo ano. Enchente grande é cíclica. Mas tudo é água. É incompreensível que alguém se diga “despreparado”, “surpreendido”, pela aproximação do nível das águas da enchente recorde na região, à de 1953. E se houve preparação, então por que não se lançou um programa habitacional para o caboclo ribeirinho? Por que a casa dele, no lugar de fixa, não é flutuante, com energia solar, ecologicamente correta no que tange aos resíduos e à captação de água?

Em 1953, as águas invadiram a Eduardo Ribeiro, em Manaus, chegando ao Relógio Municipal. O porto da cidade, porém, o Roadway, robustecido pela moderna tecnologia inglesa da época, resistiu impávido, mantendo a cidade abastecida.

No interior, naquele ano da enchente histórica, houve muito sofrimento. O caboclo estava despreparado para a fúria das águas. Nos anos seguintes, o Estado inteiro se preparou como pode para um novo fenômeno daquele tamanho. Surgiram os primeiros muros de arrimo, embora a maioria em propriedades privadas dos abastados remanescentes do coronelismo da borracha. Depois, a prudência foi esquecida e cá estamos nós, 56 anos depois, outra vez pegos de calças curtas.

Do meu posto, na oposição, vou propor que se faça um programa para auxiliar o ribeirinho. Quero vê-lo morando decentemente. O Brasil deve isso ao herói amazônico. Ele precisa de alimentos para sobreviver a esses meses cruéis. Não é justo que viva abandonado, ermitão compulsório de uma sociedade egoísta em seu urbanismo.

Arthur Virgílio Neto é líder do PSDB no Senado.

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