Nepotismo eleitoral

Publicado originalmente no Blog do Noblat:

Em sua coluna no O Globo, sábado, Ancelmo, com sua maneira Góis de ser, demonstrou indignação com a candidatura da esposa do Joaquim Roriz, ao governo de Brasília, que seria uma afronta ao Supremo Tribunal Federal.

O tom desafiante no lançamento da candidatura na semana passada da senhora Weslian ao afirmar que seu cônjuge, Joaquim Roriz, governaria junto, seria anti-democrático. Disse ele: Minha participação será permanente. Disse ela: Vamos administrar juntos.

Ou seja, mesmo que o Supremo decrete a inelegibilidade, a candidata estaria disposta a, diriam alguns Ministros do próprio Supremo, negar eficácia à proibição legal de Joaquim Roriz voltar a governar Brasilia. Cria-se assim a figura do nepotismo eleitoral.

Trata-se de fenômeno político não apenas brasileiro. Quem governa a argentina é o casal Kirchner, ou como dizem os portenhos, “la pareja” Kirstcher. Vota-se num, leva-se dois. A situação é similar mas não idêntica à da candidatura de Hillary Clinton. Não idêntica porque Hilary não sucederia a Clinton, mas a Bush. Além dela ter um claro currículo político-eleitoral como senadora de New York. O que faz a diferença.

A questão é saber se a candidatura da senhora Weslian é legal. Algumas considerações podem ser feitas.

Primeiro, o cargo de governador é um cargo intuitu persona. Vota-se na pessoa e não no partido. A responsabilidade é individual. Quando um servidor público faz concurso, por exemplo, quem tem que exercitar o cargo para o qual foi nomeado é ele. Não pode ser seu cônjuge. Não pode um bater ponto e o outro sentar-se na cadeira.

É impensável a separação entre a responsabilidade legal do cargo e os atos praticados nele e por ele. A candidata Weslian estaria propondo justamente isto. Roriz age e eu me responsabilizo. O que pode ser uma declaração de confiança. Mas não é assim que um processo eleitoral democrático deve funcionar.

O art. 14, parágrafo 7, de nossa Constituição, que declara inelegível no território de jurisidição do titular, o cônjuge e os parentes consaguineos e afins até o segundo grau, do Presidente da República, do Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos 6 meses anteriores à eleição. Ou seja, a Constituição claramente determina que: ( a ) ser cônjuge de autoridade política implica em restrições ao direito individual de concorrer a eleições ( b ) esta restrição decorre do interesse público de que o cônjuge, no governo, não utilize a administração pública para eleger o cônjuge, na campanha.

O objetivo da Constituição é claro. A relação entre cônjuges é de tal maneira íntima que não deve interferir na campanha eleitoral, que é um meio, para evitar uma concorrência desleal e chegar ao governo. A legalidade deste, depende da legalidade daquela.

No fundo, está em jogo a moralidade do processo eleitoral. A moralidade é necessária porque equilibra a competição. Sua falta, desequilibra. O direito a resguardar é sobretudo o interesse dos demais eleitores. A moralidade é um direito subjetivo público. Ou melhor, do público. De cada um.

Inexiste letra de lei proibindo a candidatura de cônjuge de político inelegível. Mas está claro que a Constituição quer preservar a moralidade, no caso, a verdade eleitoral e administrativa. Isto é, quem realmente é o candidato.

Para estabelecer esta verdade democrática, cabe ao magistrado avaliar até que ponto a proposta do casal Roriz burla a inelegibilidade. O desafio interpretativo é caracterizar a burla, o truque.

Ninguém negaria a um cônjuge o direito de se candidatar se tivesse tido atividade política antes, se sua candidatura não tivesse como objetivo precípuo contornar a inelegibilidade de seu cônjuge.

Cabe ao Poder Judiciário estabelecer os padrões de moralidade e perguntar: existe currículo eleitoral que justifique a candidatura? Existe vida político-partidária ativa e autônoma em relação ao cônjuge? Existem prévias propostas de governo e coligações e alianças que lhe são próprias?

Da resposta a estas e outras perguntas, pode-se, ou não, caracterizar se o Brasil está ou não diante de uma tentativa de burlar eventual proibição legal.

A candidatura da senhora Weslian goza da aparência de legalidade. Mas as suas circunstâncias sugerem ser legalidade sem juridicidade.

A democracia já muito sofreu com o culto à legalidade formal sem juridicidade. Basta lembrar que a censura à imprensa no regime autoritário de 64 era legal. Era constitucional. Embora anti democrática e ilegítima. A legalidade sem juridicidade às vezes provoca efeito reverso. Em vez de assegurar o estado democrático de direito, o deslegitimiza.

É hora de voltar aos gregos. Citar Plutarco. “A pior forma de injustiça é ser injusto, mas parecer justo”. A candidatura é juridicamente precária.