À sombra de Machado, as línguas indígenas

À sombra de Machado, as línguas indígenas

Foi um momento histórico a mesa-redonda sobre “As línguas indígenas no Brasil do século XXI” realizada na terça (11) na Academia Brasileira de Letras (ABL). Desde sua fundação, é a primeira vez que um presidente da entidade discursa em guarani dentro do santuário da língua portuguesa. Marco Lucchesi abriu o evento dando as boas-vindas aos caciques e líderes que vivem no Rio de Janeiro: “Pende uvyxa kuery Peju porã”. Soou como uma reparação a Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto, funcionário do Arsenal de Guerra.

Policarpo enviou ao ministro um ofício escrito em guarani, que aprendera na gramática do padre Ruiz de Montoya.  “Certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil”, requereu ao Congresso Nacional que decretasse “o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro”.  Sofreu o deboche dos colegas de repartição, foi ridicularizado pelos jornais, diagnosticado como doido e internado no hospício. Só mesmo um “maluco beleza” misturaria “sua maluquez com sua lucidez” para defender o guarani.

Quem está à frente do seu tempo, como o visionário Policarpo Lima Barreto, é sempre visto como “pirado” pelo “sujeito normal”. Suas propostas extemporâneas de glotopolítica são discutíveis, mas a legítima defesa das línguas indígenas, feita por ele no séc. XIX, seria abraçada no Brasil em 1988 pela Constituição Federal, reforçada pela Carta Europeia sobre Línguas Minoritárias (1992) e pela Declaração Universal para a Promoção da Diversidade Cultural da Unesco (2005).

Uma nação, uma língua

Apesar disso, alguns brutamontes insistem ainda hoje que o IPHAN também pirou quando, em 2014, reconheceu o idioma guarani, falado atualmente em mais de 100 municípios, como parte do patrimônio nacional e lhe conferiu o título de “referência cultural brasileira”. Nem falar dos países do Mercosul, que o reconheceram como língua oficial.

Lima Barreto, “mulato pobre, mas livre” como cantou, em 1982, a Escola de Samba Unidos da Tijuca, pode ter se inspirado para sua obra ficcional na polêmica mantida pelo teatrólogo Joaquim Serra com Couto de Magalhães, estudioso das línguas indígenas e autor da gramática do Nheengatu, que incorporou o que havia de mais avançado nas ciências da linguagem de seu tempo.

Como é que um homem prático como Couto de Magalhães se ocupa de assunto tão insignificante como essas línguas moribundas – escreveu empanturrado de preconceitos Joaquim Serra, patrono da cadeira 21 da ABL que desde sua fundação, em 1897, ignorou ou discriminou as línguas indígenas. O discurso dominante na época se ancorava na ideia de que uma nação tinha de falar uma única língua para reforçar a unidade nacional, as demais atrapalhavam e deviam ser extintas.

Couto de Magalhães que, como o genial Lima Barreto, nunca entrou na ABL, deu o troco, esclarecendo que qualquer estudo, por mais abstrato que pareça, cedo ou tarde traz seus frutos práticos e que se é útil estudar a plantinha mais miserável dos bosques e o mineral mais insignificante dos montes, muito mais nobre é estudar uma língua:

Cada nova língua que se estuda é mais importante para o progresso da humanidade do que a descoberta de um gênero novo de minerais ou de plantas. Cada língua que se extingue (…) é uma importante página da história da humanidade que se apaga e que depois não poderá mais ser restaurada”.

O cacique do Lácio

Lima Barreto tentou três vezes entrar na ABL sem sucesso. Couto de Magalhães e a língua guarani também ficaram de fora. Agora, entram lá pela porta da frente, na voz do seu presidente e dos caciques indígenas e – o que é uma honra – com o respaldo do “Cacique do Lácio”, Evanildo Bechara, do alto dos seus 91 anos de idade. Era a sombra de Machado de Assis presente no atual projeto Ivy Marey (Terra Sem Males) da ABL, confirmando ser compatível a diversidade linguística com o culto à língua portuguesa, que convive hoje no Brasil com o guarani em situação de bilinguismo.

Quem exclui outras línguas é o unilinguismo intolerante, que confunde lealdade à sua língua com a negação das demais, como ocorreu em território brasileiro, onde no séc. XVI eram faladas cerca de 1.300 línguas. Mais de 1.100 delas foram exterminadas com os seus falantes em cinco séculos, submetidas ao glotocídio, como resultado das políticas linguísticas, que só agora proclamam a preservação da diversidade.

O bilinguismo, que está aberto a diferentes visões de mundo, foi apresentado no evento da ABL através do poema “Dues Lhénguas” escrito por Amadeu Ferreira em mirandês, uma língua falada hoje por mais de 15 mil pessoas em 31 aldeias na região de Miranda do Douro, reconhecida como segunda língua oficial de Portugal pela Comunidade Europeia. Sua tradução ao guarani foi feita por professores bilíngues em três oficinas que ministramos em 2007.

– “Tenho duas línguas comigo / duas línguas que me fizeram / e já não vivo mais sem elas, nem sou eu, sem as duas” – assim termina o poema, que advoga a permanência do bilinguismo através dos tempos e recusa sua transitoriedade e seu uso como ponte para o monolinguismo em português.

Lição de mirandês

– You falo como bós i bós nun falais como you – se queixou Manuela Ferreira na Lição de Mirandês, reclamando que o bilinguismo só tem aqui uma direção. O mirandês lá e o guarani aqui não são, porém, línguas “moribundas”, mas “anêmicas”, não estão no leito de morte, precisam apenas do sangue novo, que foi injetado pela ABL nesse evento. Por isso, os índios ali presentes talvez pudessem dizer ao presidente da Academia: “Eu falo como você e você fala como nós”.

– Como é que eu falei? – perguntou aos guarani Marco Lucchesi, um erudito que transita por 18 idiomas. O professor bilíngue Algemiro Silva estava encantado com o discurso, mas não ia perder a gozação. Assim, avaliou a proficiência do presidente da ABL:

– Eu lhe dou a nota 6.0.

– Então, fui aprovado – festejou o presidente da ABL, que relativizou sua situação, ao ver a nota 3,0 a mim atribuída. Há, no entanto, situação pior: o zero redondo dado ao finado professor da UFF, Armando Barros, que não conseguia colocar a língua no céu da boca para pronunciar a sexta vogal guarani, o “y”, grafada pelo padre Anchieta como “ig” de Mangaratigba.

Os Guarani, os Pataxó e os Puri do Rio de Janeiro, que falaram, dançaram e cantaram em suas respectivas línguas (ver programação) saíram de lá, como todos nós, incluindo Maurizio Giulano da Unesco, com a convicção de que neste Ano Internacional das Línguas Indígenas, nasceu na ABL uma criança:  o culto à diversidade.

P.S. – Já havia esboçado um texto sobre o desmoronamento de um juiz que usou sua toga não para fazer justiça, mas com fim político-partidário para eleger um candidato que o nomeou ministro. Preferi o evento da ABL que nos enche de esperança. No entanto, deixo aqui o link para crônica premonitória “Nem tudo o que reluz é Moro” publicada em 20/03/2016.

http://www.taquiprati.com.br/cronica/1257-nem-tudo-o-que-reluz-e-moro

DISCURSO EM GUARANI DE MARCO LUCCHESI, PRESIDENTE DA ABL,

TRADUZIDO PELO CINEASTA ALBERTO ALVARES

Pende uvyxa kuery Peju porã Academia Brasileira de Letra py Anhemombo’e mbovy’i pendeayvu re, tein aema ndaikuaa porain ri xeavu avã pendeayvu py, ha’e ramo ajerure, xapy’a vy pendevy kuery pe. Kuaxia pará Ayvu Rapyta amboayvu rupi ma, aendu anhembo’exevea pende ayvu porã re. Bartomeu Meliá ma ijayvu xevy pe 1999 baía de Asunción py amboayvu avã kuaxia pende reko regua aikuaa porã ve avã. Unesco ma declara 2019 petein ma’entya Mbya kuery ayvu re oin avã, ha’e ramo Academia nda’evei oeja oaxa rive avã ayvu porã regua. Petein tein ma jareko, jaekaa avã teko yvy marae’yn re, ha’e va’e aema nhandereko omombarete gue teri teko ‘ete py jaiko avã ha’egui jaiporu avã petein nhe’en porã teri. Ernst Bloch ma, ojapo va’ekue kuaxia O princípio-Esperança ma, nombopara jepei ri ayvu porã yvy Marae’yn regua re. Ha’egui xee avim a aeka ha’e va’e Yvy Marae’yn. Peju porã! Kova’e oopy.

 

TEXTO ORIGINAL EM PORTUGUÊS

Senhora Cacica, Senhores Caciques

Sejam bem-vindos à Academia Brasileira de Letras

Perdoem o meu pobre guarani. Estudei a fonética, um pouco da sintaxe e da semântica. Mas é quase nada e reconheço a minha ignorância.

No entanto, a vontade de conhecer um pouco vosso belo idioma nasceu com a leitura do Ayvu Rapyta, obra-prima que um dia de 1999, na baía de Asunción, o padre Bartomeu Meliá insistiu para que não a deixasse de ler.  E com quanto entusiasmo.

A Unesco declarou 2019 como o Ano das Línguas Indígenas e a Academia não poderia estar ausente, com o seu poder simbólico.

Buscamos todos, cada qual a seu modo, a terra sem males, o yvy mare’y, esse princípio que move o vosso mundo e colaborou para a resiliência de uma cultura fascinante e seu vigilante bilinguismo.

Ernst Bloch, autor de O princípioesperança não contemplou a dimensão da terra sem males. Faltou-lhe esse elemento poético e incontornável.

Também procuro essa terra e me sinto ligado ao vosso destino.

Sejam bem-vindos. Esta Casa também é vossa.

Fotos: Michael Félix/Divulgação ABL.